Foto – O presidente do Irã, Hassan Rouhani,
e o Papa Francisco no recente encontro no Vaticano.
No
dia 27 de janeiro de 2016, Nando Moura postou o vídeo intitulado “Papa esconde
as p* para o Irã”. No vídeo em questão, o guitarrista e vocalista da banda
Pandora 101, o qual na época esteve envolvido em uma polêmica com o youtuber
Pirula, queixa-se do encontro que teve lugar no dia anterior entre o Sumo
Pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana e o presidente iraniano (que
veio acompanhado de uma delegação de 12 pessoas, incluindo diplomatas e
oficiais vindos de Teerã) por causa das perseguições que os cristãos sofrem no
Oriente Médio. Nesse encontro (previsto para ter lugar em novembro, mas que foi
adiado em decorrência dos atentados em Paris), que foi o primeiro entre um Papa
romano e um chefe de estado iraniano desde 1999, o Papa Francisco pediu a
Hassan Rouhani que trabalhasse pela paz no Oriente Médio, ressaltando o papel
importante do Irã na estabilidade da região contra aquilo que o Papa chamou de
“difusão do terrorismo e do tráfico de armas”. Ao final do encontro, que teve 40
minutos de duração, o presidente iraniano deu ao Papa um tapete persa feito à
mão e um livro com miniaturas dentro. E o Papa, por sua vez, deu ao presidente da
nação persa o medalhão de São Martinho de Tours[1]
(padroeiro de Buenos Aires, sua cidade natal) e a encíclica “Laudato Se” (sobre
proteção do meio ambiente), ao qual o Papa se desculpou por não ter uma versão
em farsi (idioma nacional do Irã) a sua disposição, e sim em árabe e italiano.
No
começo do vídeo Nando Moura diz que o Papa (o qual ele acusa de bom-mocismo excessivo
e frouxidão) é complicado e que o deveria fazer com o supremo mandatário da
nação persa é acertar sua cara com vários golpes de um pênis de plástico e que
é de um cinismo enorme a retomada do diálogo entre o Islã e a Cristandade
porque supostamente no Irã há perseguições contra cristãos, alegando que na
nação persa entrar com uma Bíblia é proibido e que a pessoa que lá prega a
palavra de Cristo é morta e apedrejada. A indignação dele é tamanha que parece
que o Papa se encontrou recentemente no Vaticano não com o atual presidente do
Irã, e sim com Hideyoshi Toyomi ou algum shogun da Dinastia Tokugawa (1603 –
1868), notáveis por suas perseguições aos cristãos nipônicos entre os séculos
XVI a XIX. Ou então com Abu Bakr al-Baghdadi, o autointitulado califa do Estado
Islâmico.
Mas,
antes de tudo, por que falar a respeito de certas coisas que Nando Moura fala
em seus vídeos? Pelo fato de ele já ter um considerável número de inscritos em
seu canal (os quais já são quase 550 mil) e mostrar as imprecisões, meias
verdades e inconsistências do que ele disse no vídeo em questão.
E
o que será discutido aqui não são suas polêmicas com figuras como Pirula, Cauê
Moura, Clarion, Felipe Neto, Kéfera, PC Siqueira, Maestro Bogs e outros, que em
minha opinião são de irrelevantes para baixo. Diga-se de passagem, da mesma
forma com que na questão do ativismo GLBT figuras como Marco Feliciano, Jair
Bolsonaro e Silas Malafaia de um lado e de outro Jean Wyllys, Marta Suplicy e
Luiz Mott são duas faces da mesma moeda, no You Tube Nando Moura e esses
youtubers (os quais no plano ideológico são esquerdistas liberais em sua
maioria) também são duas faces de uma mesma moeda, ideologicamente falando. Mas
isso não é o que vem ao caso agora, e sim as mentiras que foram ditas a
respeito do Irã e insinuações de que a nação persa hoje em dia promove
perseguições religiosas contra cristãos e outras minorias religiosas.
Foto – Direita Neoconservadora e
Esquerda Liberal: o Yin e o Yang[2],
o Alfa e o Ômega, as duas faces de Janus[3]
contrapostas entre si.
Quem
de fato persegue cristãos no Oriente Médio não é o Irã, e sim o Estado Islâmico
nos territórios da Síria e do Iraque que eles controlam e seus patrocinadores
locais, a Arábia Saudita e as demais monarquias do Golfo Pérsico. Nesses países
em questão, por lei a única religião que pode ser professada abertamente é o
Islã da vertente sunita wahhabita. Haja vista que o regime saudita em janeiro executou
o clérigo xiita Nimr al-Nimr e mais 48 pessoas sob acusações de suposto
envolvimento com atividades terroristas. E em solo saudita não existem Igrejas
cristãs. Isso ao ponto de os soldados estadunidenses estacionados na Arábia
Saudita, quando resolvem praticar a fé cristã, tem de fazer isso fora do solo
saudita.
Isso
sem mencionar o fato de que essas monarquias são aliadas de países como os Estados
Unidos e a França, os quais, por sua vez, fecham os olhos para as atrocidades
desses regimes e os grupos por eles patrocinados, assim como os negócios
petrolíferos: na Arábia Saudita o petróleo, em realidade, não é de propriedade
do estado nacional saudita, e sim da Exxon Mobil, que é nada menos que uma das
maiores corporações petrolíferas de Wall Street. É o mesmo Ocidente que vive se
gabando de ser “livre e democrático” perante o mundo e que chama de ditadores
sanguinários líderes como o sírio Bashar al-Assad e o iraniano Mahmoud
Ahmadinejad e outrora os finados Hugo Chávez, Saddam Hussein, Muammar al-Kadaffi,
Slobodan Milošević[4],
entre tantos outros que aqui podem ser mencionados e que não raro evocando
razões humanitárias (como por exemplo, levar democracia para certos países)
como pretexto para invasões militares.
Já
essas perseguições de que Nando Moura se queixa não se verificam no Irã. Muito
pelo contrário, no Irã, mesmo sendo um país majoritariamente Islâmico xiita,
existem leis que protegem esses grupos. Segundo a Constituição da nação persa
(que é considerada por muitos especialistas na área como o compêndio de leis
mais completo do mundo atual), são consideradas iguais todas as pessoas
independentemente de religião e etnia. Minorias religiosas como os cristãos,
judeus e zoroastristas tem sua liberdade de crença assegurada pelo artigo 13 da
Constituição nacional, e estas possuem seus representantes no parlamento do Irâ
(Majlis[5])
e podem celebrar suas festividades específicas. O Artigo 26 também reconhece
que essas minorias têm liberdade de formar partidos, associações políticas e
sindicais desde que não infrinjam os princípios de independência, liberdade,
unidade nacional e dos preceitos islâmicos, assim como dos fundamentos da
República Islâmica Iraniana. E o Artigo 64 da mesma Constituição também prevê
que os zoroastristas e os judeus elegerão um representante cada um, ao passo
que os cristãos assírios e caldeus terão em conjunto um deputado e os cristãos
armênios do sul e do norte votarão um representante cada um. Ao todo, no
Parlamento iraniano, as minorias religiosas (cuja população total é de cerca de
200 mil, de um país que tem 77 milhões de habitantes ao todo) possuem cinco
representantes.
Os
zoroastristas, seguidores do zoroastrismo, a religião oficial do Irã até meados
do século VII quando da conquista islâmica e a queda da dinastia Sassânida (224
– 651), são hoje, em sua totalidade, cerca de 25 mil, concentrados
principalmente na capital Teerã, Kerman e Yazd. O governo lhes dedica parte de
seu orçamento para ajudar na manutenção de seus lugares religiosos. Há também a
serviço do Irã um considerável número de médicos, engenheiros e professores
universitários que seguem a religião fundada pelo profeta Zoroastro no século
VI antes de Cristo, e muitos deles lutaram do lado iraniano durante a guerra
Irã-Iraque (1980 – 1988), ajudando assim na defesa do país. Os zoroastristas
também possuem diversas publicações sobre assuntos religiosos e sociais, assim
como um deputado no Parlamento.
Os
cristãos, por sua vez, possuem três assentos no Parlamento Iraniano, sendo que
dois deles são para os cristãos armênios e um para os cristãos caldeus. Durante
o Natal, o próprio governo persa proporciona um serviço especial que consiste
em presentear cinco mil árvores de pinhal aos cristãos. Algo igualmente digno
de nota é o fato de que a seleção iraniana de futebol tem como seu atual capitão
um cristão armeno, o meia Andranik Teymourian, o qual esteve presente nas copas
de 2006 e 2014. Com passagens pelo futebol inglês, Teymourian se tornou o
capitão da seleção iraniana após a aposentadoria de Javad Nekouman. Hoje joga
pelo Saipan de Teerã.
Foto – Andranik Teymourian, o primeiro
capitão não-muçulmano da seleção iraniana.
Os
judeus, presentes em solo iraniano desde o século VI antes de Cristo, também
possuem representação no Parlamento iraniano, com a atividade política da
comunidade judaica centrando-se em seus representantes no Parlamento e no
Conselho Judaico de Teerã. Também tem várias sinagogas, centros culturais,
organizações juvenis, estudantis e de damas, assim como biblioteca central,
auditório e mais de 20 organizações culturais e não-governamentais e postos
como professores ou assistentes em universidades. E em Teerã há também uma
escola especial para a língua hebraica. Numericamente falando, o Irã possui uma
das maiores comunidades judaicas no Oriente Médio fora de Israel, que conta com
cerca de 30 mil a 50 mil pessoas.
Mas,
se essa história de que na República Islâmica do Irã há perseguições religiosas
é uma grande lorota, um conto da carochinha, de onde que vem todas essas falsas
histórias de que na nação persa há perseguições religiosas contra cristãos e
outras minorias religiosas? Geralmente vem da grande mídia corporativa
ocidental, que gosta de posar como defensora dos direitos humanos e que não
admite que países como o Irã tenham verdadeira soberania nacional e utilizem
seus recursos para uso próprio e não para abastecer as indústrias dos países
capitalistas centrais de matérias primas baratas que não raro são vendidas a
preço de banana, enquanto que os países periféricos compram a preço de ouro os
produtos industrializados com alto valor agregado que não raro são feitos a partir
das matérias primas que são saqueadas dos países periféricos.
Essa
mídia, a serviço do grande capital transnacional, para difamar o Irã bate em
teclas como as tais perseguições contra grupos como os Ba’hais (os quais em
realidade não passam de seitas e que, portanto, não são consideradas como
minorias religiosas. Diga-se de passagem, nem no Irã e nem em qualquer outro
lugar do mundo seita é uma minoria religiosa). Particularmente, os Ba’hais
recebem uma atenção especial da parte do Ocidente. Segundo documentos e
testemunhos históricos, esse grupo foi criado pelo colonialismo britânico e sua
sede principal está nos territórios palestinos sob ocupação de Israel. O mesmo
Israel com o qual o Irã é nem um pouco amigável desde a Revolução de 1979.
Documentos tanto da época Pahlavi (1925 – 1979) quanto do atual regime mostram
que muitos deles servem aos serviços de inteligência sionistas. E no próprio
Irã esse grupo (ao qual o aiatolá Khomeini[6]
classificou como pessoas fanáticas e instrumentos a serviço dos interesses
sionistas) tem agido nesses anos todos como quinta coluna a serviço de Israel,
cometendo delitos contra a segurança nacional e terrorismo em solo iraniano.
E
falando em Israel, Nando Moura diz também no vídeo em questão que o Irã deseja
uma guerra nuclear contra Israel. Mas, se o Irã, assim como a Coréia do Norte,
quer mesmo ter a bomba atômica, para começo de conversa, qual será a verdadeira
finalidade? Será que é mesmo fazer uma guerra nuclear contra Israel, sendo que
os efeitos colaterais dessa guerra poderiam ser extremamente nocivos para o
próprio Irã, com o efeito da radiação das explosões atômicas atingindo as
cidades iranianas, principalmente da região oeste do país? O Irã, assim como a
Coréia do Norte, quer ter essa tecnologia em mãos pelo mesmíssimo motivo pelo qual
o falecido Enéas Carneiro, o qual em vídeo anterior ele disse que foi o maior
presidente que o Brasil não teve em toda sua história, queria: como um
instrumento de barganha e assim poder negociar com as grandes potências em
termos menos desiguais, se não em pé de igualdade, e não para sair bombardeando
outros países a rodo.
Assim
sendo, o fato do Papa se encontrar com o presidente do Irâ não foi nem um pouco
vergonhoso. Muito pelo contrário: teria sido realmente vergonhoso se, ao invés
de ter se encontrado com Hassan Rouhani, o Papa ter tido um encontro no
Vaticano com Abu Bakr al-Baghdadi ou o atual rei da Arábia Saudita, Salman bin
Abdulaziz Al Saud. Desde a Revolução de 1979, o Irã é uma nação soberana e,
junto com a Rússia, tem desempenhado importante papel no combate ao Estado
Islâmico na Síria. Tratar não só o Irã como também os outros regimes da região (incluindo
ai até mesmo a Síria Baath[7]
e os defuntos regimes de Saddam Hussein no Iraque e de Muammar al-Kadaffi na
Líbia) como se fossem todos iguais a Arábia Saudita e os demais estados do
Golfo Pérsico (países esses que são verdadeiros feudos particulares de suas
respectivas famílias reais e que estranhamente pouco ou nada sofreram com a
Primavera Árabe que teve início em 2011 e que ceifou com regimes como a Líbia
de Kadaffi, a Tunísia de Ben Ali e o Egito de Hosni Mubarak) é uma grande burrice,
para não dizer idiotice. Até porque, entre outras coisas, o regime iraniano,
ideologicamente falando, não segue a mesma cartilha wahhabita que as
petro-monarquias do Golfo Pérsico seguem.
Foto – Os vazios petrodólares sauditas
ante a rica e milenar cultura persa.
Fontes:
A
discriminação e transgressão dos direitos dos xiitas na Arábia Saudita.
Disponível em:
De
quem é o interesse em derrubar o preço do petróleo? Disponível em:
Derechos de las minorías religiosas en Irán (1)+audio
(em espanhol). Disponível
em:
Derechos
de las minorias religiosas en Irán (2) (em espanhol). Disponível em:
Derechos de las minorías religiosas en Irán (3)+audio
(em espanhol). Disponível
em:
Derechos de las minorías religiosas en Irán (4) (em
espanhol). Disponível em:
Derechos de las minorías religiosas en Irán (5)+audio
(em espanhol). Disponível
em:
Em
encontro no Vaticano, presidente do Irã pede que Papa reze por ele. Disponível
em:
Entrevista
– a vida das minorias religiosas no Irã. Disponível em:
La
gran mentira sobre Rouhaní y las estatuas romanas (em espanhol). Disponível em:
Uso
ocidental do Islamismo. Disponível em:
Papa
esconde as p* para o Irã. Disponível em:
Papa
Francisco pede que Irã trabalhe pela paz no Oriente Médio. Disponível em:
NOTAS:
[1] Leia-se “Turs”, pois no francês a
partícula ou tem valor de u.
[2] Leia-se “Yan”. No mandarim, assim
como no francês, quando uma palavra termina em consoante, a última é sempre
muda.
[3] Leia-se “Ianus”. No latim, assim como
em idiomas como o alemão, o holandês, o húngaro, o polonês, o servo-croata, as
línguas escandinavas e bálticas, o tcheco, o eslovaco e outros tantos, a
partícula j tem valor de i.
[4] Leia-se “Milochevitch”, pois no servo-croata
as partículas š e ć tem o mesmo valor do ch e do tch no português e no francês,
respectivamente.
[5] Leia-se “Madjlis”, pois no farsi, da
mesma maneira como em idiomas como o inglês, o árabe e outros, a partícula j
tem valor de dj.
[6] Leia-se Rromeini, pois no persa,
assim como em idiomas como o russo, o árabe e o mongol, a partícula kh
(cirílico х) tem o mesmo valor do j no espanhol, do ch no alemão e no polonês e
do h no inglês e no húngaro: r aspirado.
[7] Leia-se Baas, pois no árabe a partícula
th tem valor de s.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEsse texto postei em meu perfil no Academia (o qual poucos dias depois da sequência da postagem foi marcado como suspeito) em janeiro e agora estou o repostando aqui.
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