sexta-feira, 22 de abril de 2016

A verdadeira história e o real caráter do Movimento Constitucionalista de 1932.


Foto – Selo comemorativo do movimento de 1932.

Muito se falou na Internet a respeito do fato de Jair Bolsonaro ter dedicado seu voto a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff em memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador da ditadura civil-militar, falecido em 15 de outubro de 2015. Mas, ao mesmo tempo, pouco (para não dizer nada) se falou a respeito do discurso proferido um dia antes por seu filho Eduardo, deputado federal do PSC (Partido Social Cristão) pelo Estado de São Paulo. Ele proferiu um discurso na Câmara dos Deputados raivosamente contra o governo e pró-impeachment. Chegou a dizer a asneira de que as escolas brasileiras precisam de mais Mises e menos Marx e mais Olavo de Carvalho (vulgo Sidi Muhammad) e menos Paulo Freire (pelo visto ele quer é cartilha neoliberal nas escolas). Mas é esse não é o foco do presente artigo. Mais para o final de sua fala, ele fez algumas referências ao que na historiografia nacional é chamado de a Revolução Constitucionalista de 1932, iniciado em nove de julho do mesmo ano, cujo epicentro foi o estado de São Paulo. Ele menciona que o povo de São Paulo tem como lema “não sou conduzido, conduzo” e cita os líderes do movimento em questão (Dráuzio, Miragaia, Martins e Camargo), afirmando que o espírito dos líderes de 1932 continua presente em todos aqueles que não se curvam a ditadores.
Mas o que foi em realidade a dita Revolução Constitucionalista de 1932? Foi um golpe reacionário da parte das oligarquias cafeeiras que foram alijadas do poder por Getúlio Vargas dois anos antes. As mesmas oligarquias cafeeiras que em 1889 derrubaram a Monarquia em conluio com militares golpistas e liberais republicanos e que desde então passaram a tratar o estado brasileiro como seu balcão de negócios particular. E, o que é pior, essas oligarquias que até então mandavam no país nunca tiveram um projeto nacional, preferindo sujeitar-se aos ingleses e franceses em nome de seus negócios com o exterior, assim como hoje em dia a classe dominante nacional faz em relação aos ianques.
Na Primeira República Brasileira (também conhecida como a República Velha [1889 – 1930]), a política era marcada pelo revezamento entre políticos das oligarquias paulistas e mineiras na presidência da República (política do café com leite) e as trocas de favores entre os Governos Estaduais e o Governo Federal que garantia a continuidade dos clãs oligárquicos no poder (política dos governadores). E é esse sistema que a Revolução de 1930 colocou fim. A Revolução de 1930, segundo o sociólogo e ex-colunista da Revista Caros Amigos Emir Sader, foi a mais importante e mais popular transformação do século XX na história do Brasil. Vargas assumiu o poder em caráter provisório, mas ainda assim com amplos poderes. Logo que assumiu o poder, Vargas, entre outras coisas, aboliu a constituição de 1891 e nomeou interventores para o governo dos estados. Para São Paulo, foi nomeado o coronel João Alberto de Barros.
Como Vargas aboliu o velho federalismo dos tempos da República Velha e instituiu uma política centralizadora, isso enfureceu as oligarquias estaduais, em especial a de São Paulo (inicialmente favorável a Vargas), a qual se sentiu prejudicada e reivindicou a realização de eleições e o fim do governo provisório. Vargas, por seu turno, reconheceu de forma oficial os sindicatos de trabalhadores, legalizou o Partido Comunista e apoiou um aumento no salário dos trabalhadores. Em março de 1932, João Alberto de Barros é substituído em seu cargo por Pedro Toledo, que mesmo sendo paulista e civil não foi bem recebido. No dia dois de maio, aconteceu a greve dos trabalhadores ferroviários da São Paulo Railway, que mobilizou 200 mil trabalhadores, o que deixou as elites paulistas (tanto urbanas quanto rurais) preocupadas. Essas, por sua vez, fizeram um comício no dia 23 de maio reivindicando uma nova constituição para o Brasil (aos moldes da constituição de 1891), onde quatro estudantes morreram. Seus nomes: Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo. As iniciais de seus nomes (MMDC) se transformaram no grande símbolo do movimento anti-varguista.


Foto – Pôster de convocação do movimento de 1932.

No dia nove de julho a revolta estala. O caráter do movimento em realidade era elitista, anti-nacional e até mesmo separatista, e seu lema era o mesmo “Não sou conduzido, conduzo” (ou em latim “Non ducor, duco”) que Bolsonaro Filho disse no recente discurso, trazendo a idéia de que São Paulo seria a locomotiva da nação e os demais estados vagões lentos e pesados que eram o fardo de São Paulo. As tropas rebeldes se espalham pela cidade de São Paulo e ocupam as ruas. A imprensa paulista, capitaneada pelas mesmas oligarquias que ficaram furiosas com a perda de seu poder, defende o movimento e uma intensa campanha de mobilização é acionada, com um grande número de pessoas se alistando para o movimento. Os revoltosos pretendiam realizar um ataque fulminante à capital federal, mas logo a sorte pendeu para o lado de Vargas. Para conter o golpe reacionário, tropas federais são enviadas para esmagá-lo. Flores da Cunha, interventor do Rio Grande do Sul e que de início estava do lado dos golpistas, bandeou para o lado de Vargas. Ante a ofensiva do governo federal, os revoltosos esperavam a adesão de outros estados. Apenas receberam alguns poucos homens enviados pelo comandante do estado do Mato Grosso, Bertoldo Klinger. Depois de três meses de luta, os paulistas se renderam ao exército federal, capitaneado pelo general Góis Monteiro. Prisões, cassações e deportações se seguem, com estatísticas oficiais apontando 830 mortos nos confrontos. Dois anos depois, uma assembleia eleita pelo povo promulgou nova Constituição. Getúlio Vargas, por sua vez, foi reeleito no pleito presidencial de 1934 com 70,58% dos votos. Assim a “babaquice constitucionalista de São Paulo” (como Gilberto Felisberto Vasconcellos, um dos colunistas da Revista Caros Amigos, caracterizou o movimento em questão) chegou ao fim.
Diz o ditado que a história é escrita pelos vencedores. Mas, por que será que o movimento de 1932, mesmo tendo sido vencido, hoje em dia é pintado de forma positiva, como um movimento de defesa da democracia e tido como um exemplo de orgulho paulista, a ponto de o nove de julho ser a data cívica mais importante do estado de São Paulo e feriado estadual, assim como o fato de nove de julho ser o nome de muitas ruas no mesmo estado (enquanto que na capital paulista não há uma única com o nome de Getúlio Vargas)? Infelizmente, aqueles que foram os derrotados em 1932 depois de um tempo se tornaram os vencedores e a partir de então passaram a escrever a história. Ou seja, foram os perdedores em um primeiro momento, mas tornaram-se os vencedores posteriormente. A elite paulista, que foi vencida em 1932, retomou o poder em 1964 com o golpe civil-militar contra o governo João Goulart (o herdeiro político-ideológico de Vargas, falecido 10 anos antes) e desde então nunca mais saiu do poder, a despeito das sucessivas mudanças de governo de 1985 em diante. Trocando em miúdos, o golpe de 1964 foi que o 1932 que deu certo. E 1932, o 1964 que deu errado (diga-se de passagem, na Marcha da Família com Deus Pela Liberdade havia alguns cartazes com a inscrição “32+32=64”).


Foto – Assim Jango, no Comício da Central do Brasil, descreveu a democracia que aqueles que carregam o espírito elitista e reacionário de 1932 defendem.

Logo após a derrota em 1932, essa mesma elite criou a USP (Universidade de São Paulo), com a intenção de criar uma intelectualidade liberal que batesse de frente com o pensamento nacionalista varguista. Ou seja, agora a batalha não era mais através das armas, e sim no campo das idéias. E para isso trouxe da França figuras como o antropólogo Claude[1] Lévi-Strauss, o historiador Fernand Braudel[2], o filósofo Jean Maugüé e o sociólogo Roger Bastide. Isso deu início à longa tradição daquilo que Nildo Ouriques chama de o “figurino francês” no ensino de ciências sociais nos meios universitários brasileiros. E Junto com a volta da oligarquia paulista ao poder em 1964 também se consolidou o restabelecimento da velha estrutura de sujeição do país à cadeia imperialista mundial, só que com uma roupagem mais moderna (através do estabelecimento de empresas multinacionais que aqui sugam o suor do povo e enviam para suas sedes no exterior a mais-valia aqui explorada), e desta vez não mais à Inglaterra e a França, e sim aos Estados Unidos, o qual após o fim da Segunda Guerra Mundial ocupou o espaço geopolítico até então ocupado pelos dois países europeus.
O espírito elitista e anti-nacional de 1932 mais adiante foi retomado pelo PSDB e por Fernando Henrique Cardoso (o qual se formou em sociologia na mesma USP que a elite paulista criou contra o nacionalismo varguista) em seus oito anos de governo. Segundo Emir Sader, a gestão FHC expressou esse espírito da seguinte maneira: governo voltado para as classes dominantes e os banqueiros, desprezo ao desenvolvimento e o resto do país para priorizar a estabilidade monetária e remunerar aos bancos com as mais altas taxas de juros do mundo. Algo também digno de nota era que FHC repetidamente dizia que ia acabar com o legado da Era Vargas. O que fez através da privatização para o capital estrangeiro de muitas das estatais criadas durante a Era Vargas, entre elas a Companhia Siderúrgica Nacional e a Vale do Rio Doce. E é esse mesmo espírito de 1932 que vemos nos discursos de Jair Bolsonaro e seus filhos quando eles, em seus discursos, fazem sua defesa da democracia liberal burguesa vigente no Ocidente, às críticas a política externa dos governos petistas e sua defesa do alinhamento do país com os ditos países democráticos (e nisso ele se iguala a FHC e sua teoria da dependência, que diferente das teorias de figuras como Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank e Teotônio dos Santos não visava uma ruptura com a situação de subalternidade do Brasil e da América Latina dentro da engrenagem capitalista mundial, e sim o contrário, de justificar o projeto de poder da classe dominante brasileira atrelada ao capital multinacional). Assim como naqueles que aderem ao discurso olavista e chamam Bolsonaro de “Bolsomito” (sendo que em realidade FHC, Serra, Aécio e o tucanato de um lado e de outro Bolsonaro, Feliciano, Olavo de Carvalho e a nova direita que vem se formando no Brasil são duas expressões distintas do mesmo espírito de 1932, com os primeiros sendo sua expressão moderada e liberal e os segundos a expressão truculenta e raivosa. E o sistema, para a manutenção de seu status quo, precisa dos dois. Dos primeiros em tempos de paz social e dos segundos em uma situação em que sua sobrevivência esteja ameaçada), das manifestações de classe média que só sabem criticar a Dilma e o PT por causa dos casos de corrupção que aparecem na mídia e da direita republicanóide que cada vez mais cresce no país. Em outras palavras, o espírito da defesa da ordem e dos privilégios da classe dominante e seu ideário calcado naquilo que chamamos de a “direita dos valores sem a esquerda do trabalho” (ou em francês “le gauche des valeurs sans le gauche du travail”), parafraseando Alain Soral.
Portanto, da mesma forma com que falar que Lula e o PT são comunistas e bolivarianos, falar que Bolsonaro é um fascista e/ou fascistóide é algo no mínimo indevido, já que o fascismo originalmente era avesso, entre outras coisas, ao conservadorismo tradicional, a democracia liberal vigente no Ocidente e tinha uma proposta nacionalista e de mudança revolucionária da sociedade. Tudo aquilo que o político carioca (que não raro é também caricaturado portando o bigode de Hitler) não é. O máximo que pode ser dito de Bolsonaro, politicamente falando, é que ele, além de ser a expressão truculenta e raivosa do espírito do movimento de 1932, está ideologicamente muito mais próximo dos Republicanos norte-americanos que dos fascistas do tempo de Mussolini e/ou dos nazistas do tempo de Hitler. E, como todos nós sabemos, os Republicanos são o principal partido da ordem nos Estados Unidos junto com os Democratas. Em outras palavras, o elefante azul, branco e vermelho republicano é muito mais condizente a Bolsonaro que o fascio[3] fascista e/ou a suástica nazista. E o mesmo vale para os coxinhas de classe mérdia que periodicamente vão as ruas protestar contra a corrupção que periodicamente aparece no noticiário e que tem como herói o juiz Moro e a República do Paraná. O rótulo de fascista/fascistóide lhes é igualmente impróprio (o qual foi utilizado e aplicado por Marilena Chauí em algumas palestras e debates). A estes (que também carregam em seu âmago o espírito do movimento de 1932) o rótulo de udenistas e/ou lacerdistas é muito mais apropriado, já que fazem a mesma fanfarra com temas como corrupção que nos anos 1950 e 1960 o jornalista Carlos Lacerda e a UDN (União Democrática Nacional) faziam. Ou seja, abordar o tema em questão na base do mais tacanho e rasteiro moralismo e sem tratar de suas raízes profundas, enxergando apenas a ponta do iceberg que está acima d’água e fazendo aquilo que Nildo Ouriques chama de “redução da política a moral”.
Se há algo que precisa ser mandado para o lixo da história brasileira é o movimento de 1932. Se quisermos dias melhores para o Brasil, isso terá que ser feito com o espírito da revolução de 1930, da criação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), da campanha “O Petróleo é Nosso”, da Carta-Testamento de Vargas, da Campanha da Legalidade de 1961, do Comício da Central do Brasil e das reformas de base do presidente João Goulart, não com o espírito reacionário do movimento de 1932, da campanha midiática que Carlos Lacerda promoveu contra Getúlio, JK, Jânio e Jango, da Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964, do golpe civil-militar de 1964, dos discursos de gente como Jair Bolsonaro, Marco Feliciano e Olavo de Carvalho, dos patos gigantes da FIESP, do anti-varguismo do governo FHC e das recentes manifestações de rua encabeçadas pela classe mérdia que só sabe falar de corrupção e que não tem proposta alguma de melhora para o país.


Foto – Pôster de convocação do movimento de 1932.

Fontes:
As abominações da classe média – Marilena Chauí. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3MX5b3EfMAw
Eduardo Bolsonaro faz o discurso mais importante de sua vida. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T8XOU4APMsc
Emir Sader: quando os paulistas se levantaram contra o Brasil. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/noticia/133126-1
Fascismo. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fascismo
Gilberto Felisberto Vasconcellos – Soloswald. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bb3D2QxzKFs
Quinta-feira, 19 de março de 1964. Disponível em: http://brasileiros.com.br/2014/03/quinta-feira-19-de-marco-de-1964/
O colapso do figurino francês. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cJiK_1gtj3M


NOTAS:

[1] Leia-se “Lêvi”, pois no francês, assim como no espanhol, a partícula é tem valor de ê.
[2] Leia-se “Brôdel”, pois no francês a partícula au tem valor de ô.
[3] Leia-se “fachio”, pois no italiano a partícula sc, quando sucedida por e e/ou i, tem o mesmo valor do ch no português e no francês, do sh em idiomas como o inglês, o russo, o mongol e o japonês, do sz no polonês, do s no húngaro e do š no servo-croata, no tcheco, no eslovaco e outros idiomas da Europa centro-oriental.

2 comentários:

  1. Eduardo, você conhece alguma obra que relata esses fatos colocados por você no artigo ?
    Obrigado camarada.

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  2. Todos os pensadores que você citou no artigo tem obras retratando o assunto, investiguei aqui, parabéns pelo artigo.

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