quarta-feira, 9 de março de 2016

A anatomia da hipocrisia do Ocidente "livre e democrático": Kosovo, Criméia e Donbass; 2008 e 2014.


Foto 1 – Kosovo é da Sérvia.
Quarta-feira, dia 2 de março de 2016, o embaixador norte-americano na Rússia, John Teft, disse que os EUA continuarão a fazer pressões para que a Rússia devolva a Criméia à Ucrânia, a qual voltou a fazer parte da Rússia depois de 60 anos após um referendo ali realizado em março de 2014, onde a maioria dos habitantes da Península do Mar Negro votaram a favor de voltarem a fazer parte da Rússia em decorrência do golpe de estado pró-Ocidente em Kiev, que levou ao poder um grupo político russófobo que almeja integrar a antiga república soviética dentro da União Européia e da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e assim colocar as fronteiras russas em perigo.
Isso eu defino em quatro palavras: dois pesos, duas medidas. Ou seja, hipocrisia pura e deslavada. Esse mesmo senhor pelo visto se esquece de que, da mesma forma com que a Criméia resolveu voltar a fazer da Rússia através de um referendo realizado de forma limpa e democrática, seis anos antes os mesmos ianques, ainda sob a presidência de Bush filho, apoiaram a declaração de independência que fez com que Kosovo se tornasse um estado independente da Sérvia. E para variar, exigir que Kosovo volte a fazer parte da Sérvia que é bom, nenhuma palavra a respeito. Ou seja, quando o direito a auto-determinação de um determinado povo ou nação é conveniente a seus interesses geopolíticos momentâneos, ótimo. Mas quando não coincide com os mesmos, a situação muda completamente de figura.
O que esse mesmo Ocidente que adora se gabar de ser “livre e democrático” perante o resto do mundo (e que certas figuras da direita brasileira olham como um exemplo a ser seguido para o Brasil, a ponto de achar que com esses países é que o Brasil deveria priorizar sua política exterior) que hoje reclama do referendo que fez a Criméia voltar a fazer parte da Rússia fez com a Sérvia em 2008 foi uma patifaria sem tamanho na história do mundo. Após esse referendo, não só os Estados Unidos como também outros países como Alemanha, França, Áustria, Itália, Reino Unido, Albânia e até mesmo Taiwan e Turquia reconheceram a independência de Kosovo. Ao passo que países como Rússia, Espanha, Irã, China, Brasil, Venezuela e principalmente a Sérvia não reconheceram até hoje Kosovo como país independente (Rússia, Espanha, Irã e China certamente pelo fato de terem seus problemas com separatismos internos).
Desde a década de 1990, durante e após a debacle do bloco soviético, o Ocidente “livre e democrático” de tudo fez para destruir com a Iugoslávia e seu tecido nacional, incluindo a incitação aos separatismos croata, bósnio, esloveno e kosovar (a começar pelo reconhecimento das independências eslovena e croata da parte da Alemanha e da Áustria, desejosas de ter esses países sob sua esfera de influência econômica) e o igualmente hediondo bombardeio da OTAN à Iugoslávia em 1999, feito sob o pretexto de proteger os albaneses de Kosovo que estavam sofrendo uma suposta limpeza étnica. Sendo que em realidade o que se passava em Kosovo na época é que havia um grupo terrorista, o Exército de Libertação de Kosovo, que promovia chacinas e intimidações contra a população sérvia de Kosovo. Esse grupo era envolvido até o pescoço com tráfico de drogas, de armas e até de órgãos humanos para a Europa, e entre seus integrantes estava Hashim Tachi, o qual foi o premiê de Kosovo entre 2008 a 2014.
Em realidade, durante os 78 dias de bombardeio à Iugoslávia, a OTAN ajudou o Exército de Libertação de Kosovo. E, na ocasião em questão, essa crise em Kosovo veio a calhar para Bill Clinton, o então presidente ianque. Ele se via às voltas com o escândalo Monica Lewinsky (ex-estagiária da Casa Branca) e um processo de impeachment contra o ex-presidente norte-americano foi aberto. Mas, graças ao desvio de foco que a crise de Kosovo e o consequente bombardeio da OTAN à Iugoslávia propiciaram, a atenção do povo norte-americano foi desviada, o processo esfriou com o passar do tempo, Bill Clinton se safou e pode terminar seu mandato sem grandes percalços. Anos mais tarde, na Itália, Silvio Berlusconi, ante os escândalos e crises que na época cercavam seu governo, fez algo similar entre 2009 a 2011 com os pedidos feitos ao Brasil de extraditar Cesare[1] Battisti de volta para a Itália para ser julgado por causa dos tais supostos quatro crimes que teria cometido na década de 1970, quando era membro do grupo PAC (Proletari Armati per il Comunismo; em português Proletários Armados pelo Comunismo). E mais recentemente o presidente francês François Hollande (cuja popularidade entre o povo francês é baixíssima) está fazendo uso similar do atentado em Paris contra o Le Bataclan e outros lugares da capital francesa para justificar a intervenção francesa na Síria.
Historicamente, Kosovo sempre foi uma terra muito importante para o povo sérvio, o qual habita a região desde a Idade Média. Lá estão mais de 1300 igrejas e monumentos culturais medievais sérvios, além de 26 mosteiros ortodoxos (três deles patrimônio da humanidade). No século XII, Kosovo era o centro cultural, diplomático e religioso do reino da Sérvia, e em 1389 lá teve lugar a famosa batalha do campo de Kosovo, onde o príncipe sérvio Lazar Hrebeljanović[2] e seu exército enfrentaram as forças do sultão otomano Murad I. Os sérvios perderam a batalha, mas, a despeito de sua inferioridade numérica, conseguiram infligir um considerável dano nas fileiras adversárias. Os dois comandantes faleceram durante o curso da batalha. Essa batalha foi um episódio de grande importância para a histórica e identidade nacional sérvia, e no século XIX serviu de inspiração para os movimentos de libertação contra o domínio otomano.
Após essa tragédia que se abateu a Sérvia em 1999, o país foi vítima no ano seguinte de uma revolução colorida, a revolução Bulldozer (revolução essa que foi a primeira de muitas que assolariam o antigo espaço soviético e cercanias nos anos seguintes), a qual foi apoiada por ONGs ocidentais (entre eles a Open Society do narcotraficante George Soros, o mesmo que foi um dos grandes beneficiários da privataria[3] no Brasil durante a Era FHC) e que levou à queda de Slobodan Milošević[4], no exercício do poder desde 1987. Em Kosovo, a OTAN instalou uma base militar, a base de Bondsteel, e hoje em dia Kosovo é uma das principais rotas de entrada de droga para a Europa, assim como um entreposto do terror wahhabita e um estado falido gerido por uma elite criminosa albanesa extremamente corrupta. Sob a vista grossa (para não dizer beneplácito) da OTAN, a carnificina contra a população sérvia de Kosovo, assim como a destruição de seus patrimônios culturais (incluindo igrejas e monastérios que remontam aos séculos XII, XIII e XIV) continuou, fazendo com que muitos deles fugissem para fora de sua terra natal. E, acima de tudo, gerou o precedente para o que se viu na Criméia e no Donbass em 2014 e na Escócia no ano passado.


Foto 2 – Hashim Tachi ao lado de Barack Obama.

Nos casos da Criméia e do Donbass, por sua vez, o que aconteceu foi o seguinte: com o golpe de estado decorrente do Euromaidan que levou ao poder em Kiev uma junta interina (e que também teve maciço apoio vindo de ONGs ocidentais e do mesmo George Soros), seguido das eleições que elegeu o rei dos chocolates Petro Poroshenko, o país foi tomado por uma onda de violência xenofóbica anti-russa. Ideologicamente falando, a Ucrânia pós-Euromaidan é herdeira ideológica dos grupos nacionalistas ucranianos que sob a liderança de figuras como Stepan Bandera (do qual muitos dos manifestantes no Euromaidan carregavam retratos com sua imagem e que durante o governo Yushchenko se tornou herói da Ucrânia, tendo esse título revogado por seu sucessor Viktor Yanukovych) lutaram do lado dos alemães na Segunda Guerra Mundial. Ao término da guerra, muitos deles fugiram para o Ocidente, em especial para países como Alemanha Ocidental, Estados Unidos e Canadá e que após a independência ucraniana em 1991 muitos deles voltaram a seu país de origem.
O regime atual ucraniano, entre outras coisas, revogou a lei de 2012 assinada pelo ex-presidente Yanukovych na qual os idiomas falados pelas minorias étnicas do país tais como os russos do sul e do leste, os húngaros da Transcarpátia[5] e os tchecos, moldavos e romenos das respectivas zonas fronteiriças o status de idiomas nacionais. Para intimidar os russos residentes na Ucrânia e assim tornar o Donbass uma grande Palestina européia, o regime vigente em Kiev se vale de grupos de nacionalistas xenófobos, os quais nada mais são que os peões dos oligarcas ucranianos (muitos deles judeus, como é o caso de Igor Kolomoïskiï, o governador biônico de Dnepropetrovsk, que além da cidadania ucraniana também possui cidadania israelense e cipriota). Como Shun de Andrômeda diz ao Guerreiro Deus Bado de Alkor no episódio 94 (“Laços entre irmãos” na versão brasileira) de Cavaleiros do Zodíaco (originalmente Saint Seiya), Hilda de Polaris se aproveitava do ódio que ele nutria por seu irmão gêmeo, Shido de Mizar, e assim intentava transformá-lo em uma máquina de guerra cruel e impiedosa. Kolomoïskiï, Poroshenko (os quais promovem a guerra no Donbass com a intenção de meter a mão nas indústrias locais) e corja limitada fazem a mesmíssima coisa com os nacionalistas ucranianos se aproveitando do secular ódio que esses elementos nutrem em relação à Rússia. 


Foto 3 – “Em 16 de março nós escolheremos: Nazismo ou Rússia” – Propaganda pró-russa a respeito do referendo que levou à reintegração da Criméia à Rússia.

A maior parte da população da Criméia é etnicamente russa, assim como o grosso da população das regiões sul e leste da Ucrânia (Novorossiya). Assim sendo, essas pessoas são muito mais simpáticas à Rússia que ao Ocidente, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Galícia-Volínia (região do noroeste da Ucrânia que entre os séculos XII a XIV foi o centro de um poderoso principado originário da fragmentação da Rus’ de Kiev e que depois disso esteve entre os séculos XIV a XVIII sob domínio polaco-lituano, entre 1772 a 1918 sob domínio austríaco, de 1918 a 1939 sob o domínio da Polônia restituída e de 1941 a 1944 sob domínio germânico. A Rússia só foi ter controle efetivo sobre essa região ao final da Segunda Guerra Mundial, enquanto que conquistou as outras partes da Ucrânia no curso dos séculos XVII e XVIII após uma série de guerras contra poloneses e turcos). A situação chegou a tal ponto que Nataliya Poklonskaya (que durante os confrontos que levaram à queda de Yanukovych demitiu-se do cargo que ocupava alegando ter vergonha de viver em um país onde bandos neofascistas andavam livremente nas ruas e impunham sua lei), recebeu ligações de funcionários da procuradoria geral ucraniana onde ela foi ameaçada de ser presa e em seguida morta e despedaçada caso não aceitasse a promotoria da Criméia. Ela respondeu que preferia ser presa a servir ao que ela chamou de “nazistas”.
Temendo serem chacinados por esses elementos a serviço da oligarquia ucraniana pró-Ocidente, o Parlamento da Criméia convocou um referendo onde se perguntava a seus cidadãos se ou deveriam continuar fazendo parte da Ucrânia ou voltarem a fazer parte da Rússia. Não deu outra. A maioria da população da península decidiu que deveria voltar a fazer parte da Rússia. Mas, diferente do que aconteceu seis anos antes, os principais líderes ocidentais repudiaram o referendo na Criméia, entre eles Barack Obama, Angela[6] Merkel (a mesma Merkel que foi a favor da independência de Kosovo) e François[7] Hollande. Os líderes em questão consideraram o referendo ilegal por ter supostamente ferido a soberania ucraniana. Depois disso tivemos em maio do mesmo ano os referendos que tornaram as Repúblicas de Donetsk e Lugansk independentes de Kiev, que também tiveram repercussão negativa da parte do mesmo Ocidente “livre e democrático”. Estados Unidos e Alemanha alegaram que esses referendos não tiveram legitimidade democrática. Mas, que moral esse mesmo Ocidente, que foi favorável a independência de Kosovo em 2008, tem para falar isso a respeito dos referendos na Criméia e no Donbass? A meu ver, nenhuma moral. Ou se tem alguma moral, é uma moral hipócrita. Até porque os mesmos países que ficaram mordidos com os resultados dos referendos na Criméia e no Donbass não tiveram nenhuma consideração pela soberania sérvia. E também me pergunto: é com líderes patéticos como Merkel, Hollande e Sarkozy que a Europa irá resistir ao espectro do terrorismo wahhabita[8] (o mesmo terror wahhabita que eles não têm o menor pudor em apoiar em conflitos no Mundo Islâmico) que paira em seu próprio solo?


Foto 4 – Acima: “Em algum ponto na história – mais cedo que mais tarde – você tem que dizer ‘Basta é basta. Kosovo é independente’ e essa é a posição que nós tomamos” – George W. Bush na ocasião em que apoiou a independência de Kosovo. Abaixo: “O referendo proposto sobre o futuro da Criméia violará a constituição e a lei internacional” – Barack Obama repudiando o referendo na Criméia, seis anos mais tarde.

Fontes:
A verdade sobre Kosovo. Disponível em:
Cavaleiros do Zodíaco dublado Episódio 94 – Laços entre irmãos. Disponível em:
Claudio Mutti – uso ocidental do islamismo. Disponível em:
Criméia e Donbass: êxito e fracasso? Disponível em:
Crise Ucraniana: Os crimes de Stepan Bandera, herói dos neonazistas ucranianos. Disponível em:
EUA não cessarão de pressionar Rússia para devolver Criméia à Ucrânia. Disponível em:
Instagram deletes account for revealing destroyed Serb churches in Kosovo (em ingles). Disponível em:
Kosovo – a verdade oficial e oculta (I). Disponível em:
Kosovo independence precedent (em inglês). Disponível em:
Ocidente condena anexação da Criméia e promete novas sanções. Disponível em:
Poklonskaya: recebi ameaças de ser “despedaçada” se assumisse a promotoria da Criméia. Disponível em:
Post-war suffering (em inglês). Disponível em:
The Kremlin’s response to the events in the Ukraine gradually becames more apparent (em inglês). Disponível em:
Privatización y Privatería (em espanhol). Disponível em:
Referendos em Donetsk e Lugansk em 2014. Disponível em:
Referendo na Criméia em 2014. Disponível em:
Revoluciones de color (em espanhol). Disponível em: http://es.wikipedia.org/wiki/Revoluciones_de_colores

NOTAS:



[1] Leia-se “Tchezare”, pois no italiano, o c quando sucedido por e ou i ganha valor de tch.

[2] Leia-se “Rrebelianovitch”, pois no servo-croata, assim como em idiomas como o alemão, o holandês, o polonês, o húngaro, as línguas escandinavas e bálticas, o tcheco, o eslovaco e outras da Europa central e oriental, a partícula j tem valor de i.

[3] O termo privataria é um neologismo que une as palavras “privatização” e pirataria. Foi criado pelo jornalista brasileiro Hélio Gaspari e popularizado pelo também jornalista Amaury Ribeiro Júnior (autor do livro "A Privataria Tucana", sobre as falcatruas das privatizações feitas no Brasil durante o governo FHC).

[4] Leia-se “Milochevitch”, pois no servo-croata as partículas š e ć tem valor de ch e tch, respectivamente.

[5] Região situada no atual sudoeste da Ucrânia, fronteiriça com a Hungria e que durante muitos séculos foi parte do reino húngaro. Assim como outros territórios que outrora fizeram parte do reino da Hungria como a Transilvânia e as atuais Eslováquia e Croácia, a Hungria perdeu a Transcarpátia em decorrência do tratado de Trianon (1920), assinado junto com as potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial.

[6] Leia-se “Anguela”, pois no alemão, assim como em idiomas como o russo, o mongol, as línguas escandinavas e o japonês, o som da partícula g não muda em função da vogal seguinte como no inglês e nas línguas latinas.

[7] Leia-se “Fransoá”, pois no francês a partícula ois tem valor de oá.

[8] Ideologia puritana islâmica que remonta ao século XVIII. De origem saudita, é professada por grupos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico e que tem como patronos as petro-monarquias do Golfo Pérsico (em especial a Arábia Saudita).

2 comentários:

  1. Eduardo, quem é esse Hashim Tachi ?

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    1. O premiê de Kosovo entre 2008 a 2014 e atual presidente kosovar e que na década de 1990 foi membro do Exército de Libertação de Kosovo.

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