Este texto foi redigido
à mão em uma tarde de Julho de 2009, durante uma prova para o cargo de
Professor Assistente de Filosofia Moderna na UnB. Portanto, por se direcionar a
avaliadores acadêmicos, não está preocupado em ser facilmente legível a todos os
tipos de leitores, além de, pelo pouco tempo e impossibilidade de revisão, ter
que se contentar com um estilo que privilegie mais o conteúdo e menos o
didatismo. Mesmo assim, espero que o mesmo seja útil aos que tenham interesse
no tema, visto que representa bem muitas das idéias que venho desenvolvendo nos
últimos anos.
I
As últimas décadas foram
marcadas por discussões sobre o papel funcional e a extensão dimensional do
estado que, de forma geral, incorporam antagonismos estruturais. Resumidamente,
associou-se um "Estado Máximo" a um "Indivíduo Mínimo", e
vice-versa. Também pode-se apontar uma 'polarização' geográfica, ainda que na
direção equatorial, e não meridiana, onde o hemisfério ocidental parece abrigar
tradições individualistas menos compatíveis com noções estatistas, ao passo que
o oriente e suas tradições mais gregárias e coletivas pareça oferecer solo mais
fértil ao florescimento de estados mais amplos e densos.
Não se trata apenas de
comparar a brevidade do Fascismo Italiano e do Nazismo Alemão à longevidade do
Socialismo Soviético e Chinês, mas de apontar coincidências sugestivas, o grau
de individualidade e a posição geográfica. Afinal, poucos discordarão que os
EUA são os maiores representantes de uma sociedade dita liberal e regida por um
estado mais limitado, ao passo que no oriente podemos encontrar situações
opostas, enquanto a Europa apresenta meios termos entre o Liberalismo e a
Social Democracia.
Tal associação, todavia,
poder ser considerada ingênua diante de algumas evidências contrárias, como os
vários exemplos latino-americanos de estatismos mais expressivos, bem como de
estados teocráticos do Oriente Médio ou do aparente liberalismo japonês.
Tendo em vista essas
colocações, vamos analisar 3 proposições. A PRIMEIRA, que não basta observar a
polaridade longitudinal, mas também a latitudinal, que nos permita um breve
esboço geográfico nos 4 quadrantes do Globo. A SEGUNDA, que há bons motivos
para sustentar fundamentos históricos e culturais que apontam para uma maior
ênfase individualista no Ocidente que no Oriente. Mas que, apesar de tudo isso,
e em TERCEIRO lugar, essa noção de tensão entre "Estado Minimizado" e
o "Indivíduo Maximizado" pode revertida.
Tomemos as arbitrárias
convenções geográficas como facilitadores, e tracemos uma linha divisória cerca
de 30 graus ao leste de Greenwich para delimitar melhor o ocidente do oriente,
mas não alteramos a linha equatorial.
No quadrante Austral
Ocidental temos basicamente a América do Sul e parte da Central. E embora
tenhamos também parte da África, deixemo-la para o Oriente.
No Boreal Ocidental
temos parta da América Central, América do Norte e parte da Europa, estando
mais a Oeste a Inglaterra.
No Boreal Oriental temos
praticamente toda Ásia, e o leste Europeu, bem como o Norte da África, abrangendo,
por conveniência, todo o médio oriente.
E, enfim, no Austral
Oriental temos a África e a Oceania.
O que espero apontar é
que as nações austrais ocidentais são historicamente
menos desenvolvidas, com registros históricos muito mais recentes e, até por
menor extensão territorial contínua e clima mais ameno, por serem menos
favorecidas pelas pressões ambientais que obrigaram as nações do Norte a se
desenvolverem. Pressões que não apenas obriguem, mas também possibilitem, visto
que algumas civilizações sul-americanas floresceram promissoramente em certos
nichos, mas terminaram aniquiladas por catástrofes naturais.
I
I
A noção de
individualidade é fortemente ancorada na tradição ocidental. As antigas
religiões célticas, bem como o Orfismo, pregavam a idéia de uma alma pessoal,
que mantinha sua individualidade mesmo após sucessivas encarnações, ao passo
que Hinduísmo e Budismo vêem a "alma" mais como uma partícula de um
todo do que como um indivíduo autônomo. As almas ocidentais, desde ao menos a
religião egípcia, são julgadas por seus atos individuais após a morte, enquanto
que nas tradições do oriente, elas apenas
arrastam mecanicamente os "ecos" de seus feitos. No ocidente,
prega-se a purificação pelos próprios esforços até que se atinja uma grau de
"santidade" que não contradiz a condição individual, ao passo que no
oriente, a "iluminação" se confunde com a eliminação das
particularidades pessoais, aproximando o indivíduo de um coletivo espiritual e
aniquilando sua personalidade.
Paralelamente, a tradição
bíblica propõe uma ressurreição corpórea, ainda mais conservadora da
individualidade, e o mesmo se dá no Corão. Tal idéia não encontra paralelo no
oriente.
A própria noção de
deuses como indivíduos e mesmo de um Deus supremo pessoal com nome próprio, se contrasta
com a tradição oriental de divindades que são meras manifestações de uma
realidade única, onde mesmo o avatares, são distintas manifestações de uma
mesma divindade, que afinal é uma mera partícula de uma realidade essencial
maior.
Embora haja também
convergências, elas não superam a notável ênfase dada à individualidade pelos
ocidentais em contraste aos orientais.
Passando para o terreno
político, a própria idéia de Democracia surge no ocidente, na antiguidade, e no
renascimento. Em aparente contrapartida, a noção de escravidão mais acentua do
que enfraquece a idéia de um cidadão livre, visto criar um contraste entre este último
e o escravo, contraste muito menos colocado no oriente, onde, por sua vez,
nasce a idéia de funcionalismo público, em especial por Confúcio, como um servo
do Estado.
Apesar de outras
convergências, não se verifica no ocidente tumbas como a de alguns imperadores
chineses que enterravam populações inteiras como se fossem parte indissociável
do corpo do imperador, ou haréns tão vastos que podiam superar duas mil
mulheres.
A própria noção de
Liberdade não encontra tradução apropriada na Língua Chinesa, visto só fazer
sentido a pleno nível individual, e o mitologista Joseph Campbell afirma que
para a maior parte dos orientais, nossas noções de individualidade e liberdade
pessoal ainda não são claramente compreensíveis.
Em Agostinho de Hipona
temos a consolidação da noção de Livre Arbítrio, precedida pela noção
aristotélica da virtude como uma escolha constante, e consciente, pelo meio
termo, enquanto no oriente, embora evidentemente haja um substrato de
voluntarismo, ele não é sequer exprimível claramente, ao passo que o 'caminho
do meio' budista está mais relacionado a se deixar levar espontaneamente pelo
movimento universal normal, fluindo harmonicamente com o todo, idéia bem
ilustrada como seguir o TAO, isto é, o caminho natural.
Enfim, para destacarmos
algumas convergências, observemos que a idéia hobbesiana do estado como um
leviatã já estava prevista na sociedade hindu, que relacionava as castas às
partes do corpo de uma divindade, sendo então espontâneas aos orientais assim
como sofreram rejeição em sua própria terra. Algo similar ocorre a Rosseau,
cuja descrição de democracia, e em especial de religião nacional, encontram muito
melhor exemplo no modelo social japonês do que em qualquer paralelo ocidental,
visto que a opinião "individual" do povo refletiria uma vontade
coletiva fomentada por uma "legislador" cultural tradicional.
Finalmente, se tivemos
em Marx a maior elaboração de uma teoria que levaria a uma mobilização de
classe e a uma sociedade comunal unificada em seus valores, lembremos que no
ocidente essa idéia vingou numa versão mais suave, com a social democracia e o
estado do bem estar social, mas se radicalizou ao leste, com Lênin, e ainda
mais com Mao-Tsé-Tung, ainda mais ao leste, e mais ainda na Coréia do Norte.
Portanto, não devemos
nos iludir que o sucesso do regime chinês se deva a uma ideologia ocidental,
mas que antes se deve a uma tradição coletivista que aceita com facilidade a
idéia de um líder supremo que personaliza o estado e simboliza o povo, devendo
muito mais a uma mentalidade imperial do que a uma comuna social autônoma.
I
I I
Passemos então para a
parte terceira desta reflexão. É possível falar então numa relação entre
Estatismo e Geografia na razão inversa do individualismo. O Japão, ao invés de
constituir um contra exemplo, na verdade é o trunfo final desta concepção,
quando observado numa profundidade além da aparência.
Seu capitalismo foi implementado
por decreto imperial, segundo um plano estatal de desenvolvimento. Suas grandes
indústrias são herdeiras diretas das famílias imperiais feudais das classes de
samurais, que como castas guerreiras, se encarregavam da produção de armamento
que equipou o exército imperial na Segunda Grande Guerra, só posteriormente se
voltando para aplicações pacíficas. E apesar da influência norte americana do
plano Marshall, o povo japonês ainda é fortemente disciplinado e homogêneo em
suas idéias, comportamentos e opiniões, não sendo por acaso o pólo mundial mais
desenvolvido em robótica.
Isso tudo nos leva,
enfim, ao aparente reforço da noção de que o Estado Mínimo se realiza na razão
direta do Indivíduo Máximo, e que Robert Nozick deve estar correto em sugerir
uma correlação entre as condições favoráveis ao desenvolvimento
individual (incluindo sua noção de identidade pessoal na Teoria do
Continuador mais próximo) e a participação restrita do estado em seu
neoliberalismo.
X
Cabe, contudo e por fim,
criticar e se possível subverter essa noção. O neoliberalismo pode ostentar um
dos menos apropriados nomes, visto poder não ser realmente liberal e muito
menos algum tipo de "novidade".
Ao pretender remover o
papel estatal sob alegação de privilegiar a individualidade, parece
desconsiderar a lição de John Stuart Mill de que as forças sociais e costumes
tem muito mais força coerciva do que as leis, e que muitas vezes somente uma
ação deliberada do Estado pode ser capaz de deter a inércia sócio-cultural de
uma tradição que se caracteriza por reprimir a individualidade em prol de uma
massificação estrutural.
Somente o Estado pode
fornecer algum amparo educacional para que crianças não sejam doutrinadas
unicamente dentro da religião de seus pais ou algum amparo social para que
meninas não sejam sexualmente exploradas num contexto cultural tão antigo
quanto opressivo, ou algum amparo econômico para que os filhos não tenham como
única opção seguir o caminho dos pais, como ocorre frequentemente com os
trabalhadores rurais.
Muitas vezes, ao
defender a não intervenção estatal, o neoliberal está antes liberando o estado
de natureza onde os mais fortes podem dominar os mais fracos sem regulamentos a
cumprir, e ao invés de privilegiar a individualidade em si, a privilegia apenas
no restrito segmento sócio econômico que já está beneficiado pela ordem
"natural" das coisas, condenando a maior parte da sociedade à
opressiva perpetuação de condições desfavorecidas que têm como uma
característica inegável oprimir qualquer chance de legítima manifestação
individual.
Como antes referido, o
subdesenvolvimento pode inverter nossa percepção de individualidade, e também
de assistencialidade estatal.
O
"estado-babá" não é de fato aconselhável aos que já estão na
maturidade econômica e social, mas é vital aos que estão reduzidos a uma
carência infantil. Ao menos a educação emancipadora de Paulo Freire.
Portanto, ao invés de
pensar que é necessário minimizar o estado para permitir a liberdade do
indivíduo, podemos pensar que o estado só poderá ser legitimamente mínimo
quando cada cidadão, e todos os cidadãos, estiverem em condições de maximização
individual.
O que provavelmente é
possível, ao menos até onde nosso modelo ocidental permite experimentar.
Marcus
Valerio XR
4 de Abril de 2012
4 de Abril de 2012
Redigido
à mão em JULHO DE 2009 durante uma prova para o cargo de Professor
Assistente de Filosofia Moderna na UnB.
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