Foto
– “Diga não à doutrinação”: Logo da ONG Escola sem Partido.
Desde 2004, propostas
como Escola sem Partido, Escola Livre e afins tem aparecido no Brasil, sob a
alegação de combater uma suposta doutrinação esquerdista nas salas aula. Entretanto,
embora o Escola sem Partido exista desde 2004, essas propostas têm ganhado musculatura
mais recentemente. Em vários pontos do Brasil, iniciativas desse tipo tem
pipocado, e projetos de lei afins tem sido votados em estados como Alagoas,
Goiás, Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Ceará e Rio de Janeiro. O projeto
de lei já chegou a Brasília e está sendo debatido na Câmara dos Deputados. Como
se isso não bastasse, políticos como o pepebista Marcel Van Hattem (o mesmo Van
Hattem que enviou à Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul um
Projeto de Lei no ano passado que institui no sistema educacional gaúcho as ideias
e as propostas do Escola sem Partido), o pesecista Carlos Bolsonaro e o tucano
Izalci Dias (autor do Projeto de lei 867/2015 e que uma vez disse que o governo
tem atuado no sentido de promover a imagem de Lula e Dilma nos livros didáticos)
apoiam essas iniciativas, assim como muitos dos setores mais conservadores da
sociedade brasileira (entre eles igrejas neopentecostais).
Mas, antes de tudo, do
que se trata o Escola sem Partido (o qual no artigo a respeito de Olavo de
Carvalho na Metapedia em português é citado entre as conexões neoconservadoras
do astrólogo metido a filósofo campineiro)? Trata-se de uma ONG criada em 2004
pelo educador e advogado de Mogi das Cruzes Miguel Nagib (o qual em entrevista
ao Fantástico no dia 23 de maio de 2016 disse que em temas controversos o
professor tem que apresentar todos os lados e não apenas sua própria opinião).
Segundo Nagib, o objetivo do Escola sem Partido é dar visibilidade a um
problema muito grave que aflige grande parte das escolas e universidades
brasileiras, aquilo que ele chama de instrumentalização do ensino para fins
políticos, ideológicos e partidários.
A respeito disso, Paulo
Miranda Nascimento (mais conhecido como Pirula) postou no dia 27 de abril de
2016 em seu canal um vídeo muito interessante a respeito desse assunto,
intitulado “Escola livre de evolução?” (lembrando que Pirula é biólogo de
formação e que em seu canal há uma série interessante de vídeos a respeito da
problemática evolução x criacionismo). Assino embaixo com muito do que ele
disse no vídeo em questão. Penso eu que o que essa história de Escola sem
Partido e Escola Livre, tendo em vista quem são seus proponentes, em realidade
é um eufemismo, uma cortina de fumaça que esconde o que eles realmente querem: a
implantação de uma cartilha de direita neoliberal e reacionária nas escolas
brasileiras, a despeito da verborragia dessa gente que acha que isso que eles
querem é algo desprovido de ideologia política. Caso isso venha a ser de fato
implantado, temas como a teoria da evolução de Charles Darwin, sociologia e
questões políticas poderão ter seus dias contados nas escolas brasileiras. No
caso da teoria da evolução, essa teria que ser substituída pelo criacionismo
bíblico (e é o que é pior, teríamos que engolir o absurdo de ver o criacionismo
bíblico sendo ensinado em aulas de biologia), e assim aulas sobre os tempos
pré-históricos seriam erradicadas dos livros de história e substituídas pela
história de Adão e Eva (já que na ótica desses criacionistas a humanidade
começa com a história bíblica do Gênesis e assim a Pré-História nunca existiu).
E o pior é que isso irá acontecer diante de nossos narizes sob o pretexto de
combater a doutrinação esquerdista nas escolas brasileiras (como se também não
houvesse professores de direita que eventualmente façam o mesmo). Os
proponentes do ensino do criacionismo justificam suas posições alegando que
ensinar apenas o evolucionismo nas escolas é ir contra a liberdade de crença do
nosso povo, pois a doutrina criacionista é supostamente a predominante nas
mentes do povo brasileiro.
Entretanto, Pirula peca
em não falar a respeito do contexto em que isso surge. Essas iniciativas não surgem
do nada e estão ligados de forma umbilical ao crescimento da nova direita aqui
no Brasil. Uma direita (que conta com o apoio de setores da sociedade tais como
religiosos, pessoas pró-intervenção militar, ruralistas e grandes empresários) cujo
matiz ideológico se aproxima do ideário neoconservador do Partido Republicano
dos Estados Unidos (que combina conservadorismo social e político com liberalismo
econômico deslavado), que tem uma ligação umbilical com denominações religiosas
neopentecostais e que tem como gurus figuras como Marco Feliciano (o mesmo
Feliciano que em 13 de novembro de 2014 apresentou o Projeto de Lei 8099/2014,
que prevê a inserção na grade curricular das redes de ensino privadas e particular
o ensino sobre criacionismo), Jair Bolsonaro, Eduardo Cunha, Pastor Everaldo e
outros políticos de partidos como o PSC (Partido Social Cristão) na política e Silas
Malafaia e Olavo de Carvalho (vulgo Sidi Muhammad Ibrahim) na mídia (o mesmo
Olavo que em 2012 ridicularizou Pirula em um vídeo no YouTube por ele ter feito
um vídeo falando da questão dos fetos abortados que a Pepsi supostamente usava como
adoçante em seus produtos). O presente texto pretende fazer um complemento ao
vídeo de Pirula, mostrando e detalhando o contexto em que essas iniciativas
surgem.
Foto
– Paulo Miranda Nascimento, o Pirula.
Como explicar o
crescimento dessa direita, para começo de conversa? Primeiro, no fato de que a
esquerda tem se chafurdado em pautas inócuas e que não aglutinam a população
tais como direitos GLBT, liberação do aborto, ideologia de gênero e de drogas
como maconha e cocaína (e mais do que isso, a implantação dessas pautas em
realidade não interessam ao povo, e sim aos grandes tubarões das finanças
internacionais como George Soros, Rockefeller, Rotschild, Fundação Ford e
outros, na medida em que ajudam a exercer seu poder social e ideológico sobre a
sociedade e assim ajudando a perpetuá-lo). Essas pautas apenas dividem a
população e o que é pior: aliena o povo e esse acaba caindo no canto da sereia
da nova direita, que demagogicamente se posa como a “defensora da moral e dos
bons costumes ante a pouca vergonha que ai está”. E ante a truculência dessa
direita neoconservadora, a esquerda liberal que se chafurda nessas pautas
inócuas pode se posar como “defensora dos direitos das minorias ante a
truculência dos Felicianos, Cunhas e Bolsonaros da vida”. Assim ambos se
retroalimentam entre si a ponto de um puxar voto para o outro. Os dois lados em
questão são como o Yin e o Yang[1] no taoísmo, as duas faces
do deus Janus[2]
na mitologia romana e os personagens Piccolo e Kami Sama em Dragon Ball: dois
elementos opostos entre si, mas que se completam um ao outro formando uma
unidade contraditória. E o que é pior: os dois lados utilizando determinados
segmentos sociais como massa de manobra. As minorias pela esquerda liberal e o
povão religioso pela nova direita, tal qual nos EUA os democratas fazem com os
negros, latinos e homossexuais e os republicanos com os rednecks (termo
utilizado para designar os brancos conservadores sulistas).
Mas, que relação
iniciativas como o Escola sem Partido e o Escola Livre tem relação com o
crescimento dessa direita neoconservadora? Muitos políticos desse matiz
ideológico defendem essas iniciativas sob a alegação de combate a uma suposta
doutrinação marxista nas salas de aula. E hoje em dia temos um dos congressos
mais conservadores da história do Brasil, a ponto de termos uma fortíssima
bancada evangélica (que não por acaso é uma das principais apoiadoras dessa proposta).
E onde entra a questão da doutrinação nisso? Imaginemos que em uma sala de aula
há um professor que faça proselitismo de causas como ideologia de gênero, liberação
do aborto e liberação de drogas, assim como periódicos ataques à religião.
Obviamente que um aluno ou uma aluna que detêm certos valores morais e
religiosos vai se sentir constrangido ante essa situação. E é isso que essa
esquerda universitária de classe média para cima não quer ver: quer queiram,
quer não, o povo brasileiro é um povo moralmente conservador e religioso (algo
do qual pessoas como Marco Feliciano e Silas Malafaia tiram proveito). E
enquanto a esquerda não mudar sua práxis (ou seja, de apenas fazer justiça
social para determinados grupos sociais dentro dos marcos do capitalismo) e
deixar de lado esses ranços todos, não haverá nenhum freio efetivo ao
crescimento da direita neoconservadora. Eu, como pessoa graduada e pós-graduada
em História, considero iniciativas desse tipo como um grande absurdo, e o que é
pior com seus proponentes achando que assim serão resolvidos certos problemas
estruturais do sistema de ensino brasileiro.
E segundo, não vamos esquecer-nos
dos vários erros que o PT cometeu desde que Lula foi eleito presidente pela
primeira vez em 2002. Entre eles o fato de que o PT renunciou à luta ideológica
contra as forças reacionárias internas e que nunca chamou o povo para uma única
e mísera luta sequer (haja vista que, entre outras coisas, o PT nunca fez nada
para ao menos contrabalancear o poder da grande mídia, reforma agrária,
auditoria da dívida pública e outras tantas pautas). Ao contrário, adotou uma
política de conciliação de classes que beneficiou muito mais as classes
dominantes que as classes subalternas (haja vista os ganhos dos banqueiros
nesses anos todos, que nunca diminuem mesmo com crise econômica). E disso essas
forças ligadas à nova direita muito bem se aproveitaram, já que ocuparam o
espaço ideológico que o PT acabou não ocupando (e depois certos elementos dessa
direita falam que só o PT almeja uma conquista cultural e ideológica do povo
brasileiro, através daquilo que eles chamam de marxismo cultural). Além de
fatores como o fato de que posturas como o fato de ter adotado a plataforma
político-econômica de Aécio Neves no segundo mandato de Dilma ter alienado
parte significativa do eleitorado petista. Há também o aumento da influência de
gente como Olavo de Carvalho entre os jovens brasileiros de classe média e alta,
o qual forneceu as bases “intelectuais” para a criação de uma nova subcultura
de direita totalmente alinhada com os discursos conspiratórios da direita
americanas, o que beneficiou figuras como Jair Bolsonaro (assunto esse que anteriormente
foi abordado no mesmo blog nos artigos “Esclarecendo o olavismo cultural –resposta a um vídeo” e “A escalada de Jean Wyllys e a dicotomia pós-moderna”).
No fim, com isso tudo nós
vemos que o há é uma importação de celeumas vindas dos Estados Unidos para o
Brasil. A questão da polêmica entre evolucionismo e criacionismo é uma delas
(aliás, se formos ver, quem promove mais essa controvérsia são Igrejas
neopentecostais, originárias em sua maioria dos Estados Unidos), assim como a
liberação de direitos específicos de minorias, ações afirmativas, cotas raciais,
as teorias conspiratórias que Olavo de Carvalho traz para o Brasil, o tal
marxismo cultural e tantas outras. Diga-se de passagem, o discurso de gente
como Bolsonaro e Feliciano nada mais é que uma cópia xerocada do discurso
conservador republicano norte-americano, assim como o discurso de gente como
Jean Wyllys é uma cópia xerocada do discurso esquerdista liberal do Partido
Democrata. Ambos extremamente desvinculados da realidade nacional e que não
tocam em questões realmente importantes para o Brasil. Não será nenhuma
surpresa, por exemplo, se daqui um tempo a direita brasileira começar a utilizar
o termo “Social Justice Warrior” (em inglês Guerreiro da Justiça Social) para
designar os militantes de partidos como o PSOL e o PSTU.
Foto
– Bolsowyllys: as duas faces de Janus contrapostas entre si.
Fontes:
Alagoas vota projeto de
Lei da Escola Livre. Mas isso é liberdade? Disponível em: http://ceticismo.net/2016/04/26/alagoas-vota-projeto-de-lei-da-escola-livre-mas-isso-e-liberdade/
Deputado quer proibir
“doutrinação política” nas escolas gaúchas. Disponível em: http://www.betaredacao.com.br/deputado-gaucho-quer-proibir-o-ensino-sobre-ideologias-politicas-em-sala-de-aula/
Escola sem Partido,
livre de doutrinação. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mTSJY8CRTKk&feature=youtu.be
Escola sem Partido: o
falso debate sobre a neutralidade da educação. Disponível em: http://www.tabiranoticias.com.br/2016/06/o-projeto-escola-sem-partido.html
‘Escola sem Partido’
quer fim da ‘doutrinação de esquerda’. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2015-09-06/escola-sem-partido-quer-fim-da-doutrinacao-de-esquerda.html
Resposta: o bravo sem trabalho
(#Pirula 34). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M_ZsFV1V2Mg
Social Justice Warrior
(em inglês). Disponível em: http://rationalwiki.org/wiki/Social_justice_warrior
Vladimir Safatle – a
esquerda deve pautar o debate. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ggxXoMkS6UE
NOTAS:
[1] Leia-se “Yan”. No mandarim, assim como
no francês, quando uma palavra termina em consoante, a última é sempre muda.
[2] Leia-se “Ianus”. No latim, assim como
em idiomas como o alemão, o holandês, o húngaro, o polonês, o servo-croata, as
línguas escandinavas e bálticas, o tcheco, o eslovaco e outros tantos, a
partícula j tem valor de i.
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