domingo, 26 de junho de 2016

Crise no Brasil: o eclipse da inocência.

Artigo originalmente publicado na página do Facebook da Revista eletrônica argentina Confluencia no dia 12 de maio de 2016.
As acusações de corrupção contra grande parte da liderança política (que envolve principalmente o PT, mas também a partidos da oposição) e no intento de destituir a presidente Dilma Rousseff, geraram no Brasil uma situação de profunda crise. Para analisar suas implicações, convidamos a escrever Nildo Ouriques, uma das principais referências da Teoria da Dependência, Professor de Economia e Relações Internacionais e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da Universidade Federal de Santa Catarina, que nos compartilha nesta nota seu olhar crítico sobre o complexo processo que se desenrola no Brasil.
Por Nildo Domingos Ouriques
Tradução do espanhol para o português por Eduardo Consolo dos Santos
O sistema político brasileiro revela sua crise quase terminal. Não se trata de uma simples crise moral, como pretende a direita liberal; tão pouco se pode explicar a crise atual pela falta de representatividade, tal como insiste a esquerda liberal. Assim mesmo, não se poder indicar a profunda corrupção dos líderes do Parlamento (Senado e Câmara dos Deputados) e de importantes líderes partidários de quase todos os partidos como fonte originária dos impasses presentes. O sistema político entrou em colapso definitivo e a possível destituição da presidente Dilma ou então sua manutenção na cadeira presidencial é incapaz de solucionar o problema. A raiz fundamental da crise atual é produto da lenta transformação do Partido dos Trabalhadores (PT) no principal partido da ordem burguesa, fenômeno ocorrido durante as duas últimas décadas, evidente principalmente durante os dois governos de Lula e Dilma.
Resulta que em um país dependente em que a grande maioria da população está submetida à superexploração da força de trabalho[1], o sistema política necessita de partidos que, em alguma medida, sejam capazes de representar os interesses das classes em conflito. O PT nasceu e cresceu na exata medida em que conseguia representar os interesses das classes subalternas. Durante muitos anos o PT praticou uma espécie de radicalismo político frente ao Estado e aos capitalistas, que consolidou no povo a ideia de que somente a luta poderia lograr conquistas sociais em um país extremamente desigual. Ao contrário do que afirmaram muitos dirigentes alguns anos depois, não foi a habilidade do partido em relação às classes dominantes que o permitiu chegar à Presidência da República; ao contrário, foi a larga tradição de luta e certo radicalismo político o responsável por seus êxitos eleitorais. Assim, o PT era o único partido que em realidade fazia forte oposição ao PSDB de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Depois do Plano Real – o mais importante pacto de classes feito pela burguesia no Brasil – o esgotamento social era imenso. A única força no país com capacidade para tirar o Brasil da crise era, obviamente, o PT. Por isso venceu.
O PT adotou – sem necessidade – O Plano Real como estratégia econômica. A única diferença era que o PT colocou um “rosto humano” no pacto de classe organizado por FHC[2]. Os programas sociais festejados por quase todos representaram, de fato, uma digestão moral da pobreza, pois o Bolsa Família, principal programa social de Lula e Dilma, consumiu apenas 0,47% do PIB, enquanto que o gasto com o rentismo da dívida acaparou sempre 8 ou 9% do PIB. Os programas sociais eram, de fato, muito baratos, razão pela qual inclusive o candidato do PSDB na última disputa eleitoral – senador Aécio Neves – o adotou sem reservas. O aprofundamento da crise tornou os programas sociais ineficientes para manter o velho e cômodo pacto de classe da república rentista. Por ele Dilma aplicou um forte ajuste de extração fundomentarista[3] depois de vencer os socialdemocratas com um programa de matiz keynesiano. Foi um golpe à sua base de apoio, e também considerado insuficiente para as frações burguesas do capital, pois, como sabemos o “ajuste” – por mais profundo – jamais é suficiente para os liberais.
Assim, enquanto os governos do PT adotaram o Plano Real dos socialdemocratas e os representantes da socialdemocracia adotaram os programas sociais do PT, as diferenças entre os partidos iam desaparecendo na mesma medida em que o sistema político perdia sua capacidade de representação. Todos são iguais, gritavam alguns![4] Todavia, não o eram por completo. Foi necessária a emergência da corrupção para que, aos olhos das maiorias, o velho postulado popular se tornara real: “todos os políticos são iguais”. Assim se explica a razão pela qual o PT perdeu força moral na sociedade, pois ademais de aplicar um programa que representa os interesses das classes dominantes[5], agora, depois dos “escândalos de corrupção”, se tornaram exatamente iguais a seus opositores. Neste contexto, pouco importa que Dilma não esteja diretamente envolvida no roubo (grande ou pequeno). Milhões observaram que o sistema é corrupto e que o PT faz parte da trama. Basta dizer que na comissão parlamentar que fez o informe e aprovou a destituição da presidente, dos 38 deputados que votaram contra Dilma, ao menos 16 respondem processos no Supremo Tribunal Federal por diferentes crimes. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, possui contas não declaradas no exterior e recebeu 5 milhões de dólares no sistema de corrupção montado entre empresários e a Petrobrás. O mesmo se passa com Renan Calheiros, presidente do Senado.
O sistema de financiamento privado nas campanhas eleitorais é uma máquina eficiente para manter o Estado como aquele velho e útil “comitê de negócios da burguesia”. O caráter de classe dos políticos é cada dia mais evidente no Congresso Nacional. Lula e Dilma supunham que no contexto de um sistema político com forte corte de classe e corrupto, somente eles podiam garantir o apoio das classes subalternas. Era sua moeda frente ao poder do capital, supunham. Mas quando a corrupção alcançou ao PT e seus principais dirigentes, o suposto encanto de independência e honestidade desapareceu por completo.
Em junho de 2013 os estudantes organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) organizaram importantes protestos pela redução da tarifa de transporte, um serviço péssimo e caro para os trabalhadores. Depois de 4 dias sem saber “o que fazer”, Dilma propôs um pacto que tão pouco respeitou. Além da manobra política típica dos partidos burgueses, existia algo valioso nele: O sistema seria capaz de se reformar? Em perspectiva podemos ver que não foi capaz de se reformar e o PT tão pouco pretendeu alguma reforma, embora não seja modesta. Dilma (e Lula) sempre jogaram com uma carta que agora, se revela frágil: “o mundo é mal com nós, mas será pior sem nós”. Eles de fato acreditavam – e ainda acreditam – que são a única alternativa para impedir a barbárie contra os trabalhadores. Porém, todos os dias assumem como própria a agenda neoliberal dos socialdemocratas, como quem diz que “pela direita não teremos oposição e pela esquerda somente nós existimos”.
A crise esgotou a capacidade de manobra do governo. Mas também esgotou historicamente o PT e seus líderes. Não importa se Lula ainda apareça nas pesquisas como o favorito para vencer as eleições de 2018, pois o PT já não poderá representar as maiorias que, todavia não logram consolidar suas preferências eleitorais. Mas isso é apenas parte do problema. Os sindicatos e a maioria da população não crê que poderá melhorar sua vida dentro do sistema, e menos, todavia que nas atuais “regras dos jogos” algo poderá, de fato, mudar. O chamado “modo petista de governar[6]” já não é possível como caminho para adoçar o conflito de classe. Os programas sociais não logram mitigar os efeitos destrutivos das taxas de desemprego superiores a 10%. Uma época de inocência política terminou. É possível que muitos se sintam solitários e até suponham que um reino de mil anos de barbárie se inaugurou. Não é certo. O eclipse da inocência, dos que acreditavam que era possível harmonizar os interesses de uma burguesia rapaz com os condenados da terra, finalmente se impôs. Mas que o fim de nossas esperanças no futuro, vivemos o fim de uma época de ilusões.
Fontes:
Janaína Paschoal desmascara FHC e chama PSDB de “oposição fraca”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3aYl2PKM01g
Profesor Lupa – Brasil (em espanhol). Disponível em:
Superexploração do trabalho. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Superexplora%C3%A7%C3%A3o_do_trabalho
Texto original em espanhol:

NOTAS DO TRADUTOR:


[1] De acordo com Ruy Mauro Marini, o conceito de superexploração da força de trabalho, abordado pela primeira vez em sua obra Subdesarrollo y revolución (1968), consiste dos mecanismos que a burguesia de um país periférico dentro da engrenagem capitalista mundial utiliza para aumentar ainda mais a mais-valia extraída das massas trabalhadoras, já que essa mesma burguesia, por sua condição de sócia minoritária do capital transnacional, tem que reparti-la com seus sócios estrangeiros. O resultado prático disso seria a realimentação da situação de dependência em relação aos países centrais da engrenagem capitalista mundial e a manutenção do subdesenvolvimento, mesmo com a existência de uma industrialização interna.
[2] Sobre a chegada do PT ao poder em 2002, algumas coisas muito me intrigam. Há algumas coisas que julgo serem muito mal contadas, especialmente no que tange em relação à infame “Carta aos Brasileiros” (vulgo Carta aos Banqueiros). Certamente, Lula e seus correligionários devem ter feito uma série de conchavos com os donos do poder político e econômico brasileiro para que pudessem assumir a presidência e por eles serem aceitos. O fato é que as políticas petistas em momento algum tocaram nos privilégios das classes dominantes e deixaram praticamente intacta a política macroeconômica iniciada pelo governo FHC. Diga-se de passagem, a Carta aos Brasileiros é um real motivo pelo qual Lula e o PT devem ser prestar contas ao povo em um tribunal, e não coisas irrelevantes como o tríplex no Guarujá.
[3] Em outras palavras, ajustes fiscais cuja lógica é, geralmente sob o pretexto de recuperar uma economia em crise, apertar o cinto na barriga do povo para garantir os lucros astronômicos de banqueiros e outras figuras ligadas ao sistema financeiro (e nem que para isso o povo tenha que perder direitos e passar fome e inanição). É em sua essência o mesmo tipo de política de austeridade que na Europa a Troika (comissão composta por Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu) impôs a países como Espanha, Itália, Portugal e Grécia e que os levou à ruína. É a velha lógica de ganhos concentrados para poucos e prejuízos socializados para todos (menos para eles, obviamente).
[4] Isso certamente explica a razão pela qual muitas pessoas (principalmente da direita mais raivosa que vive do senso comum vendido pela grande mídia) ultimamente têm olhado o PSDB como um partido de falsa oposição ao PT (assim Janaína Paschoal, uma das redatoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, descreveu o partido de FHC, Serra e Aécio Neves em pronunciamento na Comissão Especial de Impeachment do dia 28/04/2016), e desde então tem buscado refúgio em figuras mais próximas no plano ideológico aos Republicanos norte-americanos, tais como Jair Bolsonaro e Marco Feliciano. O resultado foi visto nas manifestações do dia 13 de março, onde em plena Avenida Paulista figurões tradicionais do tucanato como Aécio Neves e Geraldo Alckmin foram vaiados pelos manifestantes.
[5] E depois certos elementos bitolados pelo senso comum vendido pela grande mídia vomitam por ai que o PT é comunista, bolivariano e acusações similares.
[6] Modo de governar esse que, devido justamente a sua política de conciliação de classes, era elogiado pela oposição a Hugo Chávez na Venezuela.

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