Artigo originalmente publicado na página do Facebook da Revista eletrônica argentina Confluencia no dia 12 de maio de 2016.
As acusações de
corrupção contra grande parte da liderança política (que envolve principalmente
o PT, mas também a partidos da oposição) e no intento de destituir a presidente
Dilma Rousseff, geraram no Brasil uma situação de profunda crise. Para analisar
suas implicações, convidamos a escrever Nildo Ouriques, uma das principais
referências da Teoria da Dependência, Professor de Economia e Relações
Internacionais e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da
Universidade Federal de Santa Catarina, que nos compartilha nesta nota seu
olhar crítico sobre o complexo processo que se desenrola no Brasil.
Por Nildo Domingos
Ouriques
Tradução do espanhol
para o português por Eduardo Consolo dos Santos
O sistema político
brasileiro revela sua crise quase terminal. Não se trata de uma simples crise
moral, como pretende a direita liberal; tão pouco se pode explicar a crise
atual pela falta de representatividade, tal como insiste a esquerda liberal.
Assim mesmo, não se poder indicar a profunda corrupção dos líderes do Parlamento
(Senado e Câmara dos Deputados) e de importantes líderes partidários de quase
todos os partidos como fonte originária dos impasses presentes. O sistema
político entrou em colapso definitivo e a possível destituição da presidente
Dilma ou então sua manutenção na cadeira presidencial é incapaz de solucionar o
problema. A raiz fundamental da crise atual é produto da lenta transformação do
Partido dos Trabalhadores (PT) no principal partido da ordem burguesa, fenômeno
ocorrido durante as duas últimas décadas, evidente principalmente durante os
dois governos de Lula e Dilma.
Resulta que em um país
dependente em que a grande maioria da população está submetida à
superexploração da força de trabalho[1],
o sistema política necessita de partidos que, em alguma medida, sejam capazes
de representar os interesses das classes em conflito. O PT nasceu e cresceu na
exata medida em que conseguia representar os interesses das classes
subalternas. Durante muitos anos o PT praticou uma espécie de radicalismo
político frente ao Estado e aos capitalistas, que consolidou no povo a ideia de
que somente a luta poderia lograr conquistas sociais em um país extremamente
desigual. Ao contrário do que afirmaram muitos dirigentes alguns anos depois,
não foi a habilidade do partido em relação às classes dominantes que o permitiu
chegar à Presidência da República; ao contrário, foi a larga tradição de luta e
certo radicalismo político o responsável por seus êxitos eleitorais. Assim, o
PT era o único partido que em realidade fazia forte oposição ao PSDB de
Fernando Henrique Cardoso (FHC). Depois do Plano Real – o mais importante pacto
de classes feito pela burguesia no Brasil – o esgotamento social era imenso. A
única força no país com capacidade para tirar o Brasil da crise era, obviamente,
o PT. Por isso venceu.
O PT adotou – sem
necessidade – O Plano Real como estratégia econômica. A única diferença era que
o PT colocou um “rosto humano” no pacto de classe organizado por FHC[2].
Os programas sociais festejados por quase todos representaram, de fato, uma
digestão moral da pobreza, pois o Bolsa Família, principal programa social de
Lula e Dilma, consumiu apenas 0,47% do PIB, enquanto que o gasto com o rentismo
da dívida acaparou sempre 8 ou 9% do PIB. Os programas sociais eram, de fato,
muito baratos, razão pela qual inclusive o candidato do PSDB na última disputa
eleitoral – senador Aécio Neves – o adotou sem reservas. O aprofundamento da
crise tornou os programas sociais ineficientes para manter o velho e cômodo
pacto de classe da república rentista. Por ele Dilma aplicou um forte ajuste de
extração fundomentarista[3]
depois de vencer os socialdemocratas com um programa de matiz keynesiano. Foi
um golpe à sua base de apoio, e também considerado insuficiente para as frações
burguesas do capital, pois, como sabemos o “ajuste” – por mais profundo – jamais
é suficiente para os liberais.
Assim, enquanto os
governos do PT adotaram o Plano Real dos socialdemocratas e os representantes
da socialdemocracia adotaram os programas sociais do PT, as diferenças entre os
partidos iam desaparecendo na mesma medida em que o sistema político perdia sua
capacidade de representação. Todos são iguais, gritavam alguns![4]
Todavia, não o eram por completo. Foi necessária a emergência da corrupção para
que, aos olhos das maiorias, o velho postulado popular se tornara real: “todos
os políticos são iguais”. Assim se explica a razão pela qual o PT perdeu força
moral na sociedade, pois ademais de aplicar um programa que representa os
interesses das classes dominantes[5],
agora, depois dos “escândalos de corrupção”, se tornaram exatamente iguais a
seus opositores. Neste contexto, pouco importa que Dilma não esteja diretamente
envolvida no roubo (grande ou pequeno). Milhões observaram que o sistema é
corrupto e que o PT faz parte da trama. Basta dizer que na comissão parlamentar
que fez o informe e aprovou a destituição da presidente, dos 38 deputados que
votaram contra Dilma, ao menos 16 respondem processos no Supremo Tribunal
Federal por diferentes crimes. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo
Cunha, possui contas não declaradas no exterior e recebeu 5 milhões de dólares
no sistema de corrupção montado entre empresários e a Petrobrás. O mesmo se
passa com Renan Calheiros, presidente do Senado.
O sistema de
financiamento privado nas campanhas eleitorais é uma máquina eficiente para
manter o Estado como aquele velho e útil “comitê de negócios da burguesia”. O
caráter de classe dos políticos é cada dia mais evidente no Congresso Nacional.
Lula e Dilma supunham que no contexto de um sistema político com forte corte de
classe e corrupto, somente eles podiam garantir o apoio das classes subalternas.
Era sua moeda frente ao poder do capital, supunham. Mas quando a corrupção
alcançou ao PT e seus principais dirigentes, o suposto encanto de independência
e honestidade desapareceu por completo.
Em junho de 2013 os
estudantes organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) organizaram importantes
protestos pela redução da tarifa de transporte, um serviço péssimo e caro para
os trabalhadores. Depois de 4 dias sem saber “o que fazer”, Dilma propôs um
pacto que tão pouco respeitou. Além da manobra política típica dos partidos
burgueses, existia algo valioso nele: O sistema seria capaz de se reformar? Em
perspectiva podemos ver que não foi capaz de se reformar e o PT tão pouco
pretendeu alguma reforma, embora não seja modesta. Dilma (e Lula) sempre
jogaram com uma carta que agora, se revela frágil: “o mundo é mal com nós, mas
será pior sem nós”. Eles de fato acreditavam – e ainda acreditam – que são a
única alternativa para impedir a barbárie contra os trabalhadores. Porém, todos
os dias assumem como própria a agenda neoliberal dos socialdemocratas, como
quem diz que “pela direita não teremos oposição e pela esquerda somente nós
existimos”.
A crise esgotou a
capacidade de manobra do governo. Mas também esgotou historicamente o PT e seus
líderes. Não importa se Lula ainda apareça nas pesquisas como o favorito para
vencer as eleições de 2018, pois o PT já não poderá representar as maiorias
que, todavia não logram consolidar suas preferências eleitorais. Mas isso é
apenas parte do problema. Os sindicatos e a maioria da população não crê que
poderá melhorar sua vida dentro do sistema, e menos, todavia que nas atuais
“regras dos jogos” algo poderá, de fato, mudar. O chamado “modo petista de
governar[6]”
já não é possível como caminho para adoçar o conflito de classe. Os programas
sociais não logram mitigar os efeitos destrutivos das taxas de desemprego
superiores a 10%. Uma época de inocência política terminou. É possível que
muitos se sintam solitários e até suponham que um reino de mil anos de barbárie
se inaugurou. Não é certo. O eclipse da inocência, dos que acreditavam que era
possível harmonizar os interesses de uma burguesia rapaz com os condenados da
terra, finalmente se impôs. Mas que o fim de nossas esperanças no futuro,
vivemos o fim de uma época de ilusões.
Fontes:
Janaína Paschoal
desmascara FHC e chama PSDB de “oposição fraca”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3aYl2PKM01g
Profesor Lupa – Brasil
(em espanhol). Disponível em:
Superexploração do
trabalho. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Superexplora%C3%A7%C3%A3o_do_trabalho
Texto
original em espanhol:
NOTAS DO TRADUTOR:
[1] De acordo com Ruy Mauro Marini, o
conceito de superexploração da força de trabalho, abordado pela primeira vez em
sua obra Subdesarrollo y revolución
(1968), consiste dos mecanismos que a burguesia de um país periférico dentro da
engrenagem capitalista mundial utiliza para aumentar ainda mais a mais-valia
extraída das massas trabalhadoras, já que essa mesma burguesia, por sua condição
de sócia minoritária do capital transnacional, tem que reparti-la com seus
sócios estrangeiros. O resultado prático disso seria a realimentação da
situação de dependência em relação aos países centrais da engrenagem
capitalista mundial e a manutenção do subdesenvolvimento, mesmo com a existência
de uma industrialização interna.
[2] Sobre a chegada do PT ao poder em
2002, algumas coisas muito me intrigam. Há algumas coisas que julgo serem muito
mal contadas, especialmente no que tange em relação à infame “Carta aos
Brasileiros” (vulgo Carta aos Banqueiros). Certamente, Lula e seus
correligionários devem ter feito uma série de conchavos com os donos do poder
político e econômico brasileiro para que pudessem assumir a presidência e por
eles serem aceitos. O fato é que as políticas petistas em momento algum tocaram
nos privilégios das classes dominantes e deixaram praticamente intacta a
política macroeconômica iniciada pelo governo FHC. Diga-se de passagem, a Carta
aos Brasileiros é um real motivo pelo qual Lula e o PT devem ser prestar contas
ao povo em um tribunal, e não coisas irrelevantes como o tríplex no Guarujá.
[3] Em outras palavras, ajustes fiscais
cuja lógica é, geralmente sob o pretexto de recuperar uma economia em crise,
apertar o cinto na barriga do povo para garantir os lucros astronômicos de
banqueiros e outras figuras ligadas ao sistema financeiro (e nem que para isso
o povo tenha que perder direitos e passar fome e inanição). É em sua essência o
mesmo tipo de política de austeridade que na Europa a Troika (comissão composta
por Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu)
impôs a países como Espanha, Itália, Portugal e Grécia e que os levou à ruína.
É a velha lógica de ganhos concentrados para poucos e prejuízos socializados
para todos (menos para eles, obviamente).
[4] Isso certamente explica a razão pela
qual muitas pessoas (principalmente da direita mais raivosa que vive do senso
comum vendido pela grande mídia) ultimamente têm olhado o PSDB como um partido
de falsa oposição ao PT (assim Janaína Paschoal, uma das redatoras do pedido de
impeachment de Dilma Rousseff, descreveu o partido de FHC, Serra e Aécio Neves
em pronunciamento na Comissão Especial de Impeachment do dia 28/04/2016), e
desde então tem buscado refúgio em figuras mais próximas no plano ideológico
aos Republicanos norte-americanos, tais como Jair Bolsonaro e Marco Feliciano.
O resultado foi visto nas manifestações do dia 13 de março, onde em plena
Avenida Paulista figurões tradicionais do tucanato como Aécio Neves e Geraldo
Alckmin foram vaiados pelos manifestantes.
[5] E depois certos elementos bitolados
pelo senso comum vendido pela grande mídia vomitam por ai que o PT é comunista,
bolivariano e acusações similares.
[6] Modo de governar esse que, devido
justamente a sua política de conciliação de classes, era elogiado pela oposição
a Hugo Chávez na Venezuela.
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