Foto – Luís Ignácio
Lula da Silva.
Durante encontro da União Africana ocorrido na Etiópia em 18
do presente mês, Lula proferiu uma fala que gerou grande polêmica, a ponto de
gerar um incidente diplomático entre Brasil e Israel: ele comparou a atual
situação que os palestinos vivem na Faixa de Gaza com o que os nazistas fizeram
com os judeus no período entre 1933 a 1945.
A fala de Lula gerou polêmica tal que o político pernambucano foi declarado “persona non grata” em Israel. E, como não poderia deixar de ser políticos direitistas e pastores neopentecostais, adeptos do sionismo cristão, tais como Marco Feliciano, Silas Malafaia, Marcel van Hattem, Zé Trovão, Nikolas Ferreira e tantos outros, saíram em suas redes em defesa do Estado de Israel.
A coisa chegou a tal que no presente momento até falam em entrar com pedido de impeachment do petista.
Foto – Norman Gary Filkenstein.
Mas, por que será que a fala de Lula gerou tamanha polêmica,
a ponto de gerar um incidente diplomático entre Brasil e Israel e de até
falarem em impeachment contra o Presidente? Em minha humilde opinião, isso se
deve pelo fato de que Lula, de forma despretensiosa e como se não quisesse
nada, ao fazer tal comparação tocou na ferida de Israel: o Holocausto e o que
Israel vem fazendo com o mesmo desde sua fundação, em 1948. Em outras, trata-se daquilo
que Norman Gary Filkenstein, judeu sobrevivente dos campos de concentração
nazistas, chama de “A indústria do Holocausto”.
Pode-se dizer que para Israel o Holocausto é o que o Holodomor é para a Ucrânia atual. Pois da mesma forma que a Ucrânia, desde a
Revolução Laranja de 2004, vem utilizando o famigerado Holodomor, ocorrido
entre 1932 e 1933, para justificar o estabelecimento de um estado etnicamente unitário
em uma nação etnicamente diversa, a reabilitação de figuras antes execradas
tanto sob a Rússia Imperial quanto sob a União Soviética (incluindo os
colaboradores ucranianos dos nazistas na Segunda Guerra Mundial), afastamento
em relação à Rússia e aproximação em relação à Europa na área da política
externa e em última instância a guerra que o Estado Ucraniano vem movendo desde
2014 e o massacre das populações russas do sul e do leste do país (para depois
estas áreas serem repovoadas por colonos vindos do norte e do oeste da Ucrânia),
Israel usa-se do Holocausto de forma análoga para justificar o projeto sionista
no Oriente Médio.
Projeto esse que, entre outras coisas, inclui as várias
guerras internas e externas que Israel vem movendo desde sua fundação, a
conquista de territórios como a Cisjordânia e a Faixa de Gaza e o
estabelecimento de colonos judeus em áreas até então povoadas por árabes
palestinos. Inclui também a discriminação intra-judaica existente em Israel,
dos judeus de origem europeia sobre os judeus de outras procedências étnicas, incluindo judeus originários do mundo árabe e da Etiópia.
Pois bem. Eu fico imaginando com os meus botões o seguinte:
se Lula tivesse, no lugar do Holocausto nazista, comparado a atual situação que
os palestinos da Faixa de Gaza vivenciam com, por exemplo, a fome das batatas
na Irlanda nos anos 1840, as fomes que flagelaram a Índia durante o período
colonial britânico (incluindo a fome de Bengala em 1943 – ou seja, contemporânea
do holocausto nazista), os massacres que a França perpetrou na Argélia no
período entre 1830 a 1962, os massacres feitos pela Bélgica no Congo no tempo
em que este foi propriedade particular do rei Leopoldo II (cuja dinastia até
hoje reina na Bélgica, diga-se de passagem) ou o que os Estados Unidos fez na
conquista do Oeste no século XIX ou o que vêm fazendo no Iraque desde 1991, ou
o que vem sendo feito na Líbia desde 2011 pelas grandes potências
imperialistas, não teria tido toda a repercussão que teve. A fala de Lula
passaria batida e ninguém daria importância alguma à mesma. Algo anedótico e
sem importância alguma.
Alguns perguntar-me-ão – por que nesse momento citar
massacres coloniais anteriores a Hitler? Primeiro que muitos daqueles que
repudiaram a fala de Lula disseram que nada na história da humanidade se
compara com o que ocorreu aos judeus no Holocausto nazista. E segundo que Hitler
e o ideário nazista não surgiram do nada, e muito menos os desígnios imperiais
dele.
Em lugares como o Pantanal e a Amazônia, para atravessar um
rio cheio de piranhas, os boiadeiros locais se utilizam do seguinte expediente:
pegam um boi velho e/ou doente, o abatem e, este, sangrando, é entregue para
ser devorado pelas piranhas, enquanto que o resto da boiada atravessa o rio,
incólume. E com Hitler ocorre algo parecido, para não dizer análogo, como veremos. Não à toa, o
cineasta norte-americano Oliver Stone em 2010 disse que Hitler foi um “bode
expiatório fácil” ao longo da história. E não há como discordar dele nesse
ponto.
É sabido que Hitler e os nazistas, em seus desígnios e ambições imperiais de fazer da Europa Oriental o “Lebensraum” germânico, buscaram inspiração no que o Império Britânico e os Estados Unidos já vinham a muito fazendo em locais como a Índia, a África, a Austrália e o Oeste Americano. Eles queriam fazer nas terras a leste dos Montes Cárpatos e ao norte do Mar Negro (ou seja, na então União Soviética) a mesma coisa que a Inglaterra fez na Índia e os Estados Unidos fizeram no Oeste Americano. Como ressalta Egor Jakovlev em sua obra “Vojna na uničtoženie: tretij rejkh i genocid sovetskogo naroda (война на уничтожение: третий рейх и геноцид советского народа, sem tradução para o português)”, Hitler, ao lançar a Operação Barbarossa, almejava promover uma verdadeira guerra de extermínio físico sobre os povos da União Soviética a partir de 1941 se espelhando naquilo que os EUA fizeram no Oeste Americano e a Inglaterra na Austrália. Guerra essa que ele não levou adiante sozinho: assim como Napoleão em 1812, Hitler mobilizou tropas de toda a Europa para invadir a União Soviética (que antes mesmo do início na guerra da Europa travou escaramuças fronteiriças com o Japão, nas quais se saiu vencedora) junto com países como Hungria, Itália, Finlândia, Eslováquia, Romênia e Croácia, além de batalhões compostos por efetivos das várias áreas sob o domínio nazista, incluindo Noruega, França, Dinamarca, Bélgica e Holanda. E a própria propaganda nazista comumente apresentava a invasão alemã à União Soviética como o levante da Europa unida contra o “bolchevismo judaico”, como pode ser visto em vários cartazes da época.
Foto – Cartazes de
propaganda nazista de recrutamento para a guerra no Front Oriental. E detalhe:
cartazes escritos em francês e holandês.
Como vemos a propaganda nazista sobre a Operação Barbarossa
até evoca as cruzadas. Talvez, não foi à toa que durante o curso da
invasão nazista a propaganda soviética muito evocou a figura de Aleksandr
Nevskij, príncipe da República de Novgorod do século XIII que se opôs aos avanços dos cruzados do norte sobre as terras russas (lembrando que nem todas as cruzadas foram contra os poderes islâmicos no Levante) e saiu-se vitorioso sobre os suecos na batalha do rio Neva em 1240 e os cavaleiros
teutônicos na batalha do lago Čudskoe em 1242. Um filme a respeito dele até foi
feito em 1938 sob a direção de Sergej Einsenstein e trilha sonora de Serej
Prokofiev.
Foto – “Golpeamos, golpeamos e vamos golpear!” – Pôster soviético de 1942 fazendo alusão à vitória de Aleksandr Nevskij sobre os cavaleiros germânicos na batalha do lago Čudskoe.
Durante a Operação Barbarossa, cabe aqui mencionar o episódio do cerco a São Petersburgo (então Leningrado), que se arrastou por 872 dias: de oito de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1944. A situação em Leningrado chegou a tal ponto que casos canibalismo foram observados, e as consequências de tal operação até hoje afetam a população da antiga capital russa. Além disso, também remonta ao cerco a Leningrado o sumiço da câmara de âmbar, obra no estilo barroco do século XVIII que por conta de sua beleza e esplendor foi considerada a oitava maravilha do mundo.
Durante o cerco a câmara de âmbar foi roubada e pilhada pelos nazistas e enviada a Königsberg (atual Kaliningrado) para reconstrução e exibição, e o destino da peça original é até hoje desconhecido, e a peça que hoje tem em São Petersburgo na verdade é uma reconstrução feita entre 1979 a 2003 com base em pinturas e fotos antigas.
Foto – Salão de Âmbar, São Petersburgo.
No fim das contas, o plano dos nazistas de transformar a
União Soviética em uma versão germânica da Índia britânica ou do Oeste
Americano, a despeito de sucessos iniciais, foi por água abaixo e o Exército
Vermelho hasteou a bandeira vermelha no Reichstag, mas a um preço humano bem
salgado: calcula-se que 27 milhões de pessoas morreram nessa brincadeira toda.
Morticínio esse sobre o qual tipos como Marco Feliciano e outros em momento
algum citam quando se posicionaram contra a fala de Lula.
Hitler era um admirador do Império Britânico, de tal modo
que queria que a Inglaterra lutasse ao seu lado contra a União Soviética e para
articular não apenas tal aliança enviou Rudolf Hess à Inglaterra (e lembrando
que na própria nobreza inglesa havia simpatizantes do Terceiro Reich). Só que o
tiro saiu pela culatra, Hess foi capturado e passou todo o resto de sua vida na
prisão de Spandau e no fim tal aliança anglo-germânica tão acalentada por
Hitler contra o “bolchevismo judaico” não se consumou.
O uso de campos de concentração que se notabilizou com os
nazistas na Segunda Guerra Mundial na verdade não começou com eles. Começou com
os ingleses na guerra dos bôeres, ocorrida na África do Sul entre 1899 a 1902,
e chegou à Europa na Primeira Guerra Mundial, quando o Império Austro-Húngaro
criou os campos de Thalerhof (situado próximo a Graz, na Áustria oriental) e
Terezin (situado próximo a Praga, na República Tcheca) e lá internou e prendeu
grande parte da população russófila da Ucrânia Ocidental. Além disso, fala-se
muito na historiografia a respeito dos campos de concentração que os nazistas
construíram na Polônia a partir de 1939, como Auschwitz, Treblinka, Sobibor e Majdanek.
Só que o que é pouco falado é que já havia campos de concentração na Polônia
antes de 1939. Visto que após o fim da Primeira Guerra Mundial, a Polônia de
Pilsudski (a mesma Polônia do entre-guerras com a qual a Alemanha hitlerista
não apenas fez acordos de cooperação antes do início da guerra, como também partilhou
em conjunto a Tchecoslováquia em 1938) enviou prisioneiros alemães, russos,
ucranianos, bielorrussos e outros a campos como Szczypiorno, Stralkowo,
Bereza-Kartuska e Brest-Litowsk. Além disso, a primeira execução por câmara de
gás ocorreu nos Estados Unidos, mais precisamente em Nevada, no ano de 1924.
Foto – Campo de concentração de Thalerhof, Primeira Guerra Mundial.
E a coisa não para por ai: Hitler não apenas elogiava as
legislações segregacionistas existentes nos Estados Unidos que restringiam a
entrada de imigrantes asiáticos, latinos e outros, como também segundo o
historiador norte-americano James Whitman em sua obra “Hitler’s American Model”, de 2017, os nazistas buscaram inspiração
precisamente nas leis de Jim Crow que existiam nos Estados Unidos desde a
segunda metade do século XIX para conceber as leis de Nuremberg (as quais
privaram os judeus germânicos de cidadania).
Aliás, vale lembrar que as políticas de segregação racial
que existiram tanto na Austrália quanto no sul dos Estados Unidos, ambas já
existiam antes mesmo de os nazistas chegarem ao poder na Alemanha e continuaram
a existir depois da morte do político austríaco e da queda do Terceiro Reich. Visto
que nos Estados Unidos, as leis de Jim Crow surgiram em 1876, logo após o fim
da Guerra de Secessão do governo Lincoln e o período de reconstrução que a
sucedeu, e só foram abolidas em 1965 (ou seja, na mesma época em que a banda
afro-americana Jackson 5 já começava a despontar no cenário musical estadunidense).
A política da Austrália branca, que restringia a entrada de imigrantes
não-europeus à nação insular, foi instituída em 1901 e só foi abolida em 1975.
E, do ponto de vista ideológico, noções de superioridade anglo-saxônica
sobre os demais povos também em muito antecedem a Hitler. Também antecedem a
Hitler teorias como a eugenia, o racismo científico e o darwinismo social,
advogadas por figuras como Gobineau (1816 – 1882), Galton (1822 – 1911) e
Spencer (1820 – 1903), tendo aparecido ainda no século XIX. Ou seja, a
ideologia de Hitler e dos nazistas do nada não surgiu.
E, de cereja do bolo, não custa lembrar que a Inglaterra e a
França, antes do início da guerra na Europa, não apenas fizeram acordos com os
nazistas, como também permitiram que Hitler se apoderasse da região dos sudetos
(atual República Tcheca) em 1938 por meio dos acordos de Munique (obviamente, almejando
um futuro enfrentamento entre soviéticos e alemães no qual os ambos os lados se
destruíssem mutuamente). E sem esquecer também do fato de que altos figurões do
mundo corporativo americano, tais como Prescott Bush (o Bush vô), Henry Ford e corporações
como a ITT, a Standard Oil e a General Motors, fizeram negócios com os
nazistas.
Só que, aos olhos dos imperialistas ingleses e franceses,
Hitler cometeu um pecado mortal: tentou replicar no coração da Europa a mesma lógica
que eles mesmos já aplicavam há muito em outras partes do mundo. E assim ele
mostrou ao mundo que o rei está nu. De que toda a ideologia que eles vendiam de
que a Europa era o farol da civilização, aquela que deveria civilizar as outras
partes do globo, que tinha como fardo civilizar o resto do mundo, todo o
arcabouço ideológico que legitimou a expansão colonial europeia do século XIX,
era uma grande farsa. Conversa para boi dormir, em outras palavras.
Dai que vem muito da demonização em cima da figura de Hitler
e da Alemanha nazista. É como se os imperialistas ingleses, franceses e
americanos olhassem a imagem de Hitler refletida no espelho, e este, no íntimo
deles, dissesse a eles as seguintes palavras: “eu sou você, e você sou eu”. E
os primeiros assustados com o que acabaram de ver no espelho. E nisso passam a
tratar Hitler e o regime por ele erigido na Alemanha como uma anomalia, uma
aberração histórica que do nada surgiu e que nada tem relação com eles e o que
eles fizeram ao longo da história.
Também pensei no seguinte após o comentário de Lula: se ele tivesse
mencionado alguma outra tragédia que os judeus viveram ao longo da história,
incluindo a expulsão da Península Ibérica nos anos 1490 (na Espanha em 1492 sob
os reis católicos através do édito de Alhambra e em Portugal cinco anos depois,
sob Dom Manuel I), ou os pogroms da Rússia Imperial tardia (durante os reinados
de Alexandre III e Nicolau II), a fala de Lula também passaria batida e ninguém
daria importância alguma à mesma. Talvez, no máximo, emitiriam uma nota de
repúdio à declaração de Lula e vida que segue. A situação não teria chegado ao
ponto em que chegou.
E o que me faz pensar isso é que na cinematografia
hollywoodiana vemos uma abundância de filmes a respeito da temática do
holocausto. Mas, ao mesmo tempo, pelo que eu vejo a mesma Hollywood não produziu
a mesma abundância de filmes falando a respeito de perseguições mais antigas e
menos conhecidas que os judeus sofreram ao longo da história.
Fontes:
Câmara de Âmbar. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A2mara_de_%C3%82mbar
Concentration camp (em inglês). Disponível em: https://parksfacts.blogspot.com/2011/01/concentration-camp.html
Fala do Presidente Lula sobre ação de Israel na Faixa de
Gaza repercute no Plenário da Câmara. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1037144-fala-do-presidente-lula-sobre-acao-de-israel-na-faixa-de-gaza-repercute-no-plenario-da-camara
“Hitler é bode expiatório”, diz Oliver Stone. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/cultura/2010/01/100111_stonehitlerml
How american racism influenced Hitler (em inglês).
Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2018/04/30/how-american-racism-influenced-hitler
MUNDO: semelhanças entre o regime nazista e o
norte-americano. Disponível em: https://apaginavermelha.blogspot.com/2012/07/mundo-semelhancas-entre-o-regime.html
Nazi Germany’s Race Laws, the United States, and American
Indians (em inglês). Disponível em: https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=7173&context=lawreview
O genocídio na Galícia e o nascimento do nazismo ucraniano.
Disponível em: https://causaoperaria.org.br/2023/o-genocidio-na-galicia-e-o-nascimento-do-nazismo-ucraniano/#google_vignette
Os esquecidos carinhos entre a família real britânica e os
nazistas. Disponível em: https://traduagindo.com/2022/09/08/os-esquecidos-carinhos-entre-a-familia-real-britanica-e-os-nazistas/
The Thalerhof intermnent camp and his legacy for the Rusyns
of Eastern Europs (em inglês). Disponível em: https://neweasterneurope.eu/2021/09/15/the-thalerhof-internment-camp-and-its-legacy-for-the-rusyns-of-eastern-europe/
Война на уничтожение (em russo). Disponível em: https://dzen.ru/a/ZZm47ciprDdV8WKD