sábado, 4 de julho de 2020

Petucanismo: o PSDB dentro do PT. Ou as limitações ideológicas do PT, parte II (resumo do livro "O colapso do figurino francês", de Nildo Ouriques, 5/5).



Foto – .Petucanismo em ação.
Reflexão XVI –  Será que em algum momento o PT quis de fato desafiar a hegemonia burguesa no Brasil?? Ainda mais levando em conta que o PT é um partido que sempre foi refratário às experiências do chamado socialismo real, como as vistas em países como a União Soviética, a Mongólia, a Coréia do Norte, a China, o Vietnã, a Albânia e a Iugoslávia. E que foi gestado ideologicamente na mesma USP de onde saíram os tucanos. Além disso, é um partido que ingenuamente acreditou que a burguesia industrial é a boa burguesia, crença essa hoje professada também por Ciro Gomes (ao qual Nildo Ouriques também tece críticas). Talvez, essa propensão à socialdemocracia por parte do PT fosse algo que já estava posta antes mesmo de Lula tornar-se Presidente da República, agravando-se depois, uma vez no poder, na medida em que foi abrandando o radicalismo de antes.
Reflexão XVII – É só lembrar-se do contexto internacional dos anos 1980, a época da fundação e primeiros anos do PT: era um momento em que o bloco soviético agonizava, no que culminou com a vitória dos EUA na Guerra Fria e a debacle da União Soviética em 1991 e da Iugoslávia alguns anos mais tarde. Além disso, há a abertura econômica da China iniciada após a morte de Mao Zedong, o fortalecimento da Alemanha com a reunificação de 1989 e o arranque neoliberal mundial com os governos de Pinochet no Chile nos anos 1970 e Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher na Inglaterra nos anos 1980. Falava-se na época que chegou o “fim da história”. Dessa forma, o PT concebeu uma estratégia política não de tomada de assalto do Estado pela via revolucionária (não havia clima para isso na época, afinal), mas de subida ao poder pela via eleitoral, dentro dos marcos da democracia burguesia e assim operar uma série de transformações sociais e políticas em favor da classe operária. O que de fato conseguiu em 2002, e depois em 2006, 2010 e 2014, até ser apeado do poder em 2016. Mas para tal teve que fazer uma série de alianças com partidos como o PMDB.
Reflexão XVIII – Dadas as semelhanças de cosmovisões entre os dois partidos, a acomodação dos dois no sistema político brasileiro não era uma situação cujas condições já existiam antes mesmo do PT subir ao poder? Mas, por mais que tenha havido tal acomodação, isso não tornou o PT em um partido orgânico da elite brasileira como o PSDB ou o PMDB. A elite brasileira jamais irá aceitar um partido com histórica ligação com sindicatos e alta capilaridade social como o PT como um de seus partidos orgânicos. E os eventos vistos de 2016 em diante mostram claramente isso. Ou será que tudo o que foi feito contra o PT nesses anos todos foi mero acaso do destino?
Reflexão XIX – A “digestão moral da pobreza” de que Nildo Ouriques fala seria, em meu entendimento, uma situação na qual a pobreza se torna algo aceitável para o indivíduo, ao mesmo tempo em que a secular abissal desigualdade social não sofre grandes abalos. Errou-se ao integrar o pobre através apenas do consumo, mas isso não muda o fato de que os programas sociais dos governos Lula e Dilma tocaram em determinados vespeiros da sociedade brasileira. Vide a reação aos rolezinhos e queixas do tipo “aeroporto virou rodoviária”.
Reflexão XX – Se o PT, desde o início, tivesse colocado em pauta temas espinhosos como reforma agrária, regulação dos meios de comunicação e taxação de grandes fortunas, teria sido derrubado logo de cara, ainda no mensalão, quiçá não teriam deixado Lula tornar-se Presidente em 2002. Ou será que foi por mera casualidade que a ação golpista que levou à derrubada de Dilma se iniciou logo depois que ela tentou baixar as taxas de juro, em 2012? E assim atacando a verdadeira mamata, a do sistema financeiro?
Reflexão XXI – Lembro-me muito bem que em meu tempo de estudante universitário (tanto na graduação quanto na pós-graduação) tive um contato próximo ao nulo com autores como Ruy Mauro Marini, Alberto Guerreiro Ramos, André Gunder Frank e outros expoentes da Teoria Marxista da Dependência, ao passo que tive grande contato com autores prestigiados no meio acadêmico como Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein, Perry Anderson, Sérgio Buarque de Holanda e outros. Um bom exemplo de como senti na pele toda essa situação descrita por Nildo Ouriques não apenas no livro como também em várias palestras dele. Muito embora tais autores da Teoria Marxista da Dependência nem ao menos conhecesse na época. Só fui saber que eles existem a partir de 2015, quando comecei a ver palestras de Nildo Ouriques e outras figuras do IELA na Internet.
Reflexão XXII – Uma vez, Nildo Ouriques fez críticas a Jessé Souza, a ponto de dizer que o sociólogo potiguar é um “falso profeta”. Também apresentou críticas a ele no Duplo Expresso. Mal ele sabe que foi depois de ler a obra de Jessé Souza que eu comecei a compreender melhor o petucanismo de que ele e Gilberto Felisberto Vasconcellos tanto falam. Passei a compreender o petucanismo como um fenômeno ideológico no qual o discurso da esquerda é muito influenciado pelo discurso da direita e que não está circunscrito apenas a duas legendas partidárias em específico. Pelo contrário: é um fenômeno que abarca praticamente todo o espectro político nacional, tanto a esquerda quanto a direita. Também foi depois de ler os livros de Jessé Souza que passei a entender o motivo pelo qual em vida Brizola e Darcy Ribeiro classificavam o PT como “esquerda que a direita gosta” e “galinha que cacareja pela esquerda e bota ovos pela direita”. Quando você junta todos esses pontos, as coisas ficam claras.

Reflexão XXIII – Jessé Souza pode ter suas lacunas, mas em suas obras ele traz uma discussão muito importante, mais até que a discussão que ele traz em torno do tema da escravidão e seu legado nos dias atuais: a respeito da práxis política de grande parte da esquerda brasileira e a influência do discurso direitista nela. E é ai que está a importância de nos atermos a respeito do tema do petucanismo. Sem uma radical reformulação discursiva da parte de grande parte da esquerda brasileira, a Revolução Brasileira de que Nildo Ouriques tanto fala será uma mera vã utopia. Nildo Ouriques faz parte de uma ala do PSOL, ainda que minoritária dentro do partido. E como nós sabemos o PSOL é o típico partido da chamada esquerda pequeno-burguesa, com uma plataforma ideológica influenciada pelo identitarismo do Partido Democrata dos EUA. E um partido desses que se importa mais com o fato de que o gay ou o travesti pode ou não casar a Igreja, o homem transexual pode ou não jogar na liga feminina de basquete, de vôlei ou de MMA ou se o travesti pode ou não poder ter nome social está muito mais para uma ONG de direitos humanos que um verdadeiro partido político de esquerda. Uma esquerda assim, convenhamos, nasceu para ser pisada a torto e direito não apenas pelos Bolsonaros, Felicianos e Crivellas da vida, como também pelos chamados populistas de direita comandados por Steve Bannon, entre eles o húngaro Viktor Órban, o italiano Matteo Salvini, o inglês Boris Johnson, o estadunidense Donald Trump, o polonês Jaroslaw Kaczynski[1] e a francesa Marine Le Pen.
Uma coisa é certa: a Revolução Brasileira não irá se concretizar com cirandinhas típicas da esquerda pequeno burguesa, muito menos gritando “o Lula tá preso, babaca”, “o PT precisa de autocrítica” e discursos similares que soam como se fossem palavras proferidas por partidários de Bolsonaro e outros figurões da direita. Ou quem sabe votando a favor de reforma da previdência e de privatização da água ou surfando na onda do antipetismo raivoso insuflado pela Operação Lava Jato, como tem feito certo pedetista ultimamente.
Reflexão XXIV – Falando em Steve Bannon (o qual Nildo Ouriques parece subestimar quando diz que a ascensão de Bolsonaro nada teve haver com Bannon e o esquema de comunicação Cambridge Analytica, apenas o desgaste do petucanismo – sendo que Bannon alavancou não apenas a eleição de Trump nos EUA, como também na Europa políticos como Matteo Salvini na Itália, Viktor Órban na Hungria e Nigel Farage na Inglaterra e o Brexit na Inglaterra), recentemente vi um vídeo dele, no qual diz que existem Martins Bannons (o nome do pai dele) em todo o mundo e que agora está se desenrolando uma revolução do cidadão comum. E é essa a perspectiva que grande parte da esquerda nesses anos todos perdeu ao embarcar na onda do identitarismo inspirado pelo Partido Democrata dos EUA e assim fazendo desses partidos verdadeiras ONGs de direitos humanos. E o que os populistas de direita hoje no mundo inteiro fazem não é outra coisa se não preencher e ocupar esse espaço que a esquerda, principalmente a partir do fim da Guerra Fria, deixou para trás. E enquanto não recuperarmos essa perspectiva, de a esquerda voltar a fazer o trabalho de massas que antes fazia, nada de Revolução Brasileira. Ou quem sabe até terá Revolução Brasileira, mas comandada por algum populista de direita estilo Salvini ou Órban.

NOTA:

[1] Leia-se “Iaroslav Katchynski”.

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