quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Haddad, o petucano: a esquerda brasileira e suas narrativas.



Foto – Fernando Haddad.
Recentemente, Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, foi escolhido como vice-presidente da chapa petista junto com Manuela D’Ávila (e já se encontra sob a mira da justiça por causa de suposto mau feito enquanto foi prefeito de São Paulo a respeito das ciclovias [e eu particularmente, não duvido que a mão de Raquel Dodge, o poste do vampirão, esteja por trás disso]). Terá sido uma boa escolha?
Em suas obras (entre elas “A radiografia do golpe” e “A elite do atraso”), Jessé Souza menciona que um dos grandes problemas da esquerda no Brasil reside na falta de narrativas próprias: ela fala como se fosse direita ao pensar os problemas do país em conceitos como o de patrimonialismo, populismo (que, da maneira como é apresentado, nada mais faz que demonizar o Estado sempre que ele é ocupado por forças ligadas à partidos de corte popular) e homem cordial. Conceitos esses oriundos das obras de figuras como Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Francisco Weffort e Roberto da Matta, expoentes do pensamento liberal conservador cujas teorias conquistaram tamanho prestígio que pessoas das mais diversas colorações ideológicas pensam segundo tais linhas, conseguido pelo fato de a despeito do discurso reacionário e falseador da realidade se posar como crítica social. A tal ponto que segundo Jessé Souza a Operação Lava Jato é fruto dessa sociologia, assim como o governo FHC.
E, ao mesmo tempo em que Sérgio Buarque de Holanda e outros expoentes daquilo que Jessé Souza chamada de a “sociologia do vira-lata” alcançaram grande prestígio acadêmico (já que suas ideias mostraram-se interessantes e palatáveis a Casa Grande), houve um eclipse de figuras como Ruy Mauro Marini, Alberto Guerreiro Ramos, André Gunder Frank e outros não ligados ao pensamento uspiano (não custa lembrar que a USP foi criada em 1934 para criar uma intelectualidade liberal que servisse de contraponto ao nacionalismo varguista depois que a oligarquia cafeeira que mandava no país durante a República Velha foi vencida em 1930 e 1932).
E é sobre isso que gostaria de falar no presente artigo. Não para atacar Haddad ou coisa do tipo, mas para alertar sobre esse problema. Do contrário, os setores populares continuarão levando porrada e botinada da Casa Grande e do imperialismo ad eternum. Um dos motivos pelos quais a esquerda (excetuando-se o PCO e outros partidos de menor expressão) tem agido como uma barata tonta desde 2013 diante da ofensiva da direita capitaneada pela Operação Lava Jato e a Rede Globo reside justamente na ausência de uma narrativa alternativa que se contrapunha ao discurso que se contraponha ao discurso de seus algozes. Ou seja, um discurso que se contraponha à retórica da suposta luta contra a corrupção capitaneada pelos juízes e procuradores da Car Wash e que mostre o quão farsesco isso é. A tal ponto que se chegou ao ponto de vermos bizarrices como a Luciana Genro e outras figuras da esquerda brasileira defenderem uma operação policial comandada por pessoas muitas vezes ligadas às tradicionais oligarquias que mandam no país desde o século XVI por meio de laços de parentesco e matrimônio que usa o conto do combate à corrupção como subterfúgio para fazer a mais deslavada e baixa politicagem.
E Haddad, um representante daquilo que o sociólogo potiguar chama de a ala crítica da classe média, é um dos que assim pensam o Brasil e seus problemas. Isso o aproxima de figuras tão díspares ideologicamente dele tais como o ministro do STF Luís Roberto Barroso e a estrela da Lava Jato Deltan “Power Point da Convicção” Dallagnol. No que pode muito bem ser visto em um artigo de autoria do próprio Haddad publicado na edição nº129 da Revista Piauí, intitulado “vivi na pele o que aprendi nos livros: um encontro com o patrimonialismo brasileiro” e citado por Jessé Souza em “A elite do atraso”.
Mais recentemente, Haddad teceu comentários sobre a crise pela qual a Venezuela e a Nicarágua passam no presente momento em uma sabatina promovida pelo site Catraca Livre, na contramão da posição oficial de seu próprio partido sobre o que se passa nos dois países caribenhos. Lá Haddad foi entrevistado por Gilberto Dimenstein e quando perguntado sobre o fato de que os governos Lula e Dilma nunca fizeram uma crítica contundente aos dois países caribenhos e se o PT iria repensar esse tipo de coisa, Haddad responde que os governos petistas nunca tomaram partido em conflitos na região (o abrigo a Zelaya em 2009 foi o que então?), que essa é uma posição correta da chancelaria, que ambos os países se encontram à beira de uma guerra civil, que na Venezuela há uma tradição golpista em ambos os lados e a ausência de estabilidade institucional e que Hugo Chávez se manteve fechando o regime. Perguntado sobre se os dois países são ou não ditaduras, Haddad respondeu que em situações de conflito aberto um país não se pode ser caracterizado como democracia. Falou o que falou sem tocar no cerne da questão, que envolve a ingerência do imperialismo anglo-americano em ambos os países e seus interesses. Quando ouvi tais comentários, tive a impressão de que quem estava falando era ninguém menos que Jair Bolsonaro, só que sem a retórica truculenta do político carioca e cara-metade político-ideológica de Jean Wyllys.
Em muitos de seus artigos na Revista Caros Amigos, Gilberto Felisberto Vasconcellos cunhou a expressão “petucanismo”, posteriormente também empregada por Nildo Ouriques e outros. Segundo o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, a expressão petucanismo se refere às similaridades de cosmovisão entre o PT e o PSDB, a despeito de situarem-se em diferentes posições dentro do espectro político.

Foto – Gilberto Felisberto Vasconcellos.
Em meu entendimento, o petucanismo de que tanto o colunista da finada Caros Amigos quanto o presidente do IELA falam em realidade é um fenômeno de amplitude muito maior, decorrente do fato de que tanto a esquerda quanto a direita brasileira pensarem conforme as ideias dos já citados expoentes do conservadorismo liberal brasileiro (segundo os quais o grande problema do Brasil é o fato de que o Estado é sequestrado por uma elite política [tirando assim o “impoluto” mercado da reta] e que essa o privatiza em seu favor). Bem provavelmente, foi isso que deu margem para Leonel Brizola e Darcy Ribeiro em vida classificarem o PT como “galinha que cacareja para a esquerda e bota ovos para a direita” e “esquerda que a direita gosta”. Esquerda essa cuja existência em um primeiro momento foi interessante ao sistema vigente de forma a fazer um contraponto a propostas mais radicais de esquerda (não nos esqueçamos de que enquanto oposição o PT nutria certo ranço quanto a Getúlio Vargas e só posteriormente foi rever tal posicionamento).
E isso é algo que não está limitado apenas aos dois partidos específicos em questão, diga-se de passagem. Percebe-se, por exemplo, a influência das ideias de Raymundo Faoro em sua obra “Os donos do poder” no discurso do MBL quando Kim Kataguiri e Fernando Holiday advogam mais mercado e menos Estado, a ponto de olhar o segundo como o espaço das virtudes por excelência (sem se dar conta de que a corrupção na política e no setor privado andam juntas, a ponto de uma não existir sem a outra). Ou quando Jair Bolsonaro, em entrevista, afirmou que mais Estado é sinônimo de mais infelicidade na vida das pessoas. Mais recentemente, em alguns discursos e pronunciamentos nos debates, repetiu as mesmas ideias a esse respeito. Ele, que tem como guru econômico o banqueiro Paulo Guedes e que em seu programa de governo (como na política econômica e exterior) em sua essência repete a cartilha dos governos FHC e Temer. Diga-se de passagem, coisas como o fato de Jair Bolsonaro ser (parafraseando Guilherme Boulos) mais um dos tons de Temer (o tom sionista de Temer para ser mais exato), suas ligações com o Instituto Millenium (o qual é ligado à Atlas Network dos irmãos Koch, os patronos da direita ultraliberal da qual Bolsonaro faz parte) que Alex Solnik aventou em vídeo recente postado no TV247, as propostas descabidas para educação e a maneira como ele encara questões como a corrupção me preocupa muito mais que o que ele pensa em relação a minorias e certas pautas defendidas pela esquerda lacradora. Bolsonaro em realidade é um tucano de retórica truculenta e que veste o figurino do Partido Republicano. Um tucano Nutella, trocando em miúdos.
Mesmo que não sejam as influências diretas do discurso do MBL e de Jair Bolsonaro (que não é tão avesso à democracia como Gilberto Dimenstein pensa), isso não muda o fato de que as ideias de livros como “Raízes do Brasil” e “Os donos do poder” e o prestígio que elas detêm nos meios acadêmicos ajudam a criar o terreno propício para que as ideias neoliberais vindas de fora (como as da escola austríaca que o MBL tanto defende) e aqui defendidas por think thanks como o Instituto Millenium tenham o terreno fértil para que proliferem como ervas daninhas. E o mais importante de tudo a meu ver: que o discurso que adotam possui o mesmo conteúdo e essência do discurso dos expoentes do liberalismo conservador de matiz uspiana.
Igualmente pode-se perceber a influência dessas ideias dos expoentes do conservadorismo liberal brasileiro quando alguém como o Nando Moura fala que o PT é a maior quadrilha do país, sem levar em consideração que a boca de fumo da corrupção não está nos políticos que periodicamente aparecem nos escândalos noticiados pela imprensa, e sim na intermediação financeira (além do fato de os petistas, perto de empresas de mídia e partidos como o PSDB e o DEM, serem grandes trombadinhas – basta ver o montante de dinheiro que o mensalão petista moveu em comparação com casos como o Banestado, o trensalão tucano, a privataria tucana e a sonegação fiscal da Rede Globo). Ou mesmo em periódicas postagens de Deltan Dallagnol em seu perfil no Facebook (o qual por seu turno fala como se não fosse parte do mundo das elites corruptas e das autoridades públicas que fazem o que querem e não são punidas de que ele tanto fala nessas postagens. Logo ele, que é filho de um desembargador).
Marina Silva, o tom verde de Temer, igualmente trata o problema da corrupção como endêmico do Estado, nunca coloca o setor privado no meio e apresenta os políticos como os grandes chefões dos esquemas de corrupção (e assim transformando aviãozinho em chefão do tráfico, sintoma em doença). Ou seja, a mesma retórica criminalizadora do Estado e da política especialmente quando no poder não estão forças ligadas às velhas oligarquias, mas partidos de corte popular que pode ser vista tanto no discurso do PSDB quanto do MBL e de Bolsonaro. Ela, que tal qual Luciana Genro mostrou-se favorável à Farsa a Jato e que foi favorável ao impeachment de Dilma Rousseff. Mas o que esperar de alguém que tem como mecenas a Neca Setúbal do Itaú, o mesmo Itaú que recebeu do governo Temer uma isenção fiscal de R$ 25 bilhões (ou seja, o equivalente a quase 500 malas do Geddel em isenção fiscal)? Discursos similares podem ser vistos nos demais tons de Temer.
E, diga-se de passagem, não é apenas em questões ligadas à política interna brasileira que a esquerda repete as narrativas produzidas pela direita: recentemente, o PSTU fez coro com a Folha de São Paulo a respeito do se passa na Nicarágua no presente momento (como fez em vários episódios anteriores). Os ursinhos morenistas chegaram ao ponto de explicar ao jornalão que a Nicarágua é uma ditadura. Nisso de dividir da forma mais maniqueísta possível as nações entre democracias e ditaduras eles acabam repetindo o mesmo discurso de figuras como Bolsonaro quando ele ataca países como o Irã, a Venezuela, Cuba e Bolívia por supostamente serem ditaduras e fala que o Brasil precisa de uma política externa livre de direcionamentos ideológicos. Segundo Rui Pimenta Costa, com isso o PSTU está é absolvendo as nações imperialistas, dando-lhe um atestado de boa conduta.
Segundo Ramez Maalouf em um de seus artigos publicados no Correio da Cidadania, a dinastia Bush fez o que fez no Iraque em parte porque os mitos criados pela mídia ocidental a respeito do país mesopotâmico (incluindo os mitos de que o país era governado por uma brutal ditadura unipartidária sob a regência do partido Baath[1] e da opressão de uma minoria sunita sobre uma maioria xiita e os curdos) foram aceitos de forma acrítica e até hoje ecoados por amplos setores de esquerda.
Outro episódio digno de menção é a repercussão que a recente entrevista de Jair Bolsonaro no Jornal Nacional, concedida em 28 de agosto de 2018, teve nas redes sociais. Vi muita gente principalmente da esquerda lacradora batendo palmas para a jornalista Renata Vasconcellos por ela ter dito que não aceita receber menos que um homem que exerça a mesma função que uma mulher, entre outras coisas. Isso ao mesmo em que Bolsonaro teve a ousadia jogar na cara da Rede Globo em rede nacional alguns de seus podres (entre eles seu apoio ao golpe de 1964 e a menção aos investimentos que a emissora da família Marinho recebe do Estado há muitos anos após a jornalista insinuar que ela paga o salário de Bolsonaro por meio dos impostos). Algo de fazer Leonel Brizola revirar-se de seu túmulo.
Resumindo a ópera, os vários lados em questão podem discordar em aspectos secundários, mas no essencial estão de acordo: pensam o Brasil segundo os mesmos conceitos e ideias, embora possam chegar a conclusões com algumas divergências entre si. E bem provavelmente, a dimensão política que Nildo Ouriques atribui ao termo seja em realidade uma consequência da dimensão ideológica que Gilberto Vasconcellos atribui. Chego a essa conclusão obviamente tendo como base a minha leitura de obras como “Elite do atraso” e “Radiografia do golpe”, de Jessé Souza e ligando todos esses pontos entre si.

Foto – Petucanismo, as convergências de cosmovisão entre a esquerda e a direita brasileira.
Fontes:
Souza, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.
BOLSONARO “A corrupção é um câncer na política brasileira”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MYUA7EZ1Z4w&ab_channel=CANALBOLSONARO2018
Bolsonaro é um títere do Millenium. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0_Epi3CGfe8&ab_channel=TV247
Darcy Ribeiro, na visão de Gilberto Vasconcellos: pensador rebelde e anti-imperialista. Disponível em: https://jornalggn.com.br/blog/roberto-bitencourt-da-silva/darcy-ribeiro-na-visao-de-gilberto-vasconcellos-pensador-rebelde-e-anti-imperialista
Haddad contraria PT e adota discurso da direita sobre Venezuela. Sobre os EUA? Nada diz. Disponível em: https://duploexpresso.com/?p=97307
Jair Bolsonaro Liberalismo Econômico. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=07cmQvXuONs&ab_channel=JohnReilly
Jair Bolsonaro| Melhores Momentos| Debate Rede TV (17/08/2018). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L-m0RDIlkVU&ab_channel=Conservadorismo
Jair Bolsonaro no Jornal Nacional | Completo 28/08/2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-LaNZaes7ig&ab_channel=TubaldoVale
Marina Silva fala sobre escândalos de corrupção e plano de governo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fbaf0kWHgxY&ab_channel=JornaldaRecord
Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (1). Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/colunistas/ramez-philippe-maalouf/72-artigos/imagens-rolantes/10086-submanchete250914
PSTU e Folha de São Paulo contra a Nicarágua. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7RlHJkZTewU&ab_channel=CausaOperariaTV
“PTucano” (4): Haddad contraria PT e adota discurso da direita sobre Venezuela. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9hFZQowRNps&ab_channel=DuploExpresso
Rede Atlas: a força tarefa por trás dos “libertários de ultra-direita” por trás da ofensiva capitalista na América Latina. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FAntifascismo%2FRede-Atlas-a-forca-tarefa-dos-libertarios-de-ultradireita-por-tras-da-ofensiva-capitalista-na-America-Latina%2F47%2F41429#.W32yGh217L4.facebook
Vivi na pele o que aprendi nos livros: um encontro com o patrimonialismo brasileiro. Disponível em: http://piaui.folha.uol.com.br/materia/vivi-na-pele-o-que-aprendi-nos-livros/

NOTA:


[1] Leia-se “Baas”. No árabe o dígrafo th tem valor de s.

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