Foto – Cartaz do
filme “Animais Fantásticos 3: os segredos de Dumbledore”.
Recentemente, estreou na China o filme “Animais Fantásticos
3: os segredos de Dumbledore”. Trata-se de um spin-off de Harry Potter, baseado no livro "Animais Fantásticos e onde habitam", publicado em 2001. Por solicitação do governo chinês, todas as
cenas, diálogos e referências ao relacionamento homossexual entre o
protagonista, Alvo Dumbledore, e o bruxo das trevas Gellert Grindenwald foram
removidas. Um corte de seis segundos foi feito no filme omitindo tal relação.
Nós apoiamos tal decisão. Visto que um filme infanto-juvenil
não é o lugar para esse tipo de coisa.
Como de praxe, a lacrolândia não gostou nem um pouco dessa
notícia. E o que a lacrolândia, pelo que vejo, não entende é que uma coisa é
colocar esse tipo de coisa em um desenho como South Park, que é destinado a uma
audiência mais madura. E outra bem diferente é colocar esse tipo de coisa em um
filme ou desenho destinado ao público infanto-juvenil, sem a mesma maturidade
para lidar com esse tipo de coisa (que nem estúdios como a Disney e o Cartoon
Network vêm fazendo ultimamente).
Mas eu gostaria de aproveitar esse episódio não para falar
sobre ele em si mesmo, mas para relembrar a vocês que houve um tempo em que os
Estados Unidos que hoje estão despontando na produção desse tipo de conteúdo para
o público infanto-juvenil também censuravam produções infanto-juvenis de origem
estrangeira com presença de conteúdo LGBT.
Mais precisamente, gostaria de relembrar a vocês a respeito
de um caso ocorrido há 27 anos nos mesmos Estados Unidos. Trata-se do caso
envolvendo o anime Sailor Moon, da mangaká Naoko Takeuči.
Sailor Moon foi publicado originalmente em 1991, nas páginas
da revista Nakayoši, publicada pela editora Kodanša. Fortemente inspirado pelos
seriados do gênero Super Sentai, Sailor Moon pertence ao gênero maho šodžo
(garota mágica). A publicação de Sailor Moon se estendeu até 1997, com 52
capítulos e 18 volumes ao todo.
Um ano mais tarde, em 1992, a obra de Takeuči ganhou versão
animada nas mãos da Toei Animation. Ao todo 200 episódios foram produzidos
entre 1992 a 1997, dividido em cinco fases distintas: Sailor Moon (episódios 1
a 46), Sailor Moon R (episódios 47 a 89), Sailor Moon S (episódios 90 a 127),
Sailor Moon Super S (episódios 128 a 166) e Sailor Moon Stars (episódios 167 a
200), e mais cinco OVAs. Pelo fato de que a produção da versão animada foi
feita quando o mangá ainda estava em produção, sequências inexistentes nos
quadrinhos (os chamados fillers) foram criadas com o intuito de impedir que a
história da versão animada alcançasse o mangá (algo muito comum na indústria da
produção de animes, diga-se de passagem).
Foto – Naoko Takeuči, a criadora de Sailor Moon.
Depois de fazer muito sucesso em seu país de origem, a
versão animada de Sailor Moon chegou aos Estados Unidos em 1995, pela empresa
DiC Enterteinment. E, chegando ao país de Edgar Allan Poe e Mark Twain, a obra
foi submetida à censura por conta da presença de conteúdo LGBT. E isso começa
ainda na primeira temporada.
Na primeira temporada de Sailor Moon somos apresentados à
organização maligna Negaverso, liderada pela Rainha Beryl e seus quatro reis
celestiais Jedite, Neflite, Zyosite e Kunzite (rebatizado como Malašite na
versão americana). Todos eles possuem nomes derivados de pedras e minerais:
Jedite vem de jadeite, Neflite vem de nefrite (outro nome para a pedra de
jade), Zyosite e Kunzite vem dos minerais de mesmo nome e Beryl vem do mineral
berílio.
Foto – Os quatro reis celestiais do Negaverso. Jedite (acima) e Neflite (abaixo) à esquerda, Zyosite (acima) e Malašite (abaixo) à direita. Rainha Beryl ao centro.
Entre os quatro reis celestiais (em japonês šitennoh; 四天王),
dois deles, Zyosite e Kunzite (rebatizado como Malašite na versão americana),
tem uma relação amorosa um com o outro. Tal relação é exclusiva da animação, e
uma vez nos Estados Unidos Zyosite, que possui uma feição bem afeminada, foi
transformado em mulher. Até ganhou uma voz feminina.
Em 1996 a primeira temporada de Sailor Moon vem ao Brasil,
na trilha do sucesso de Cavaleiros do Zodíaco, sendo veiculada pela finada Rede
Manchete. Tal como a maioria dos animes dublados no Brasil à época, Sailor Moon
foi dublado no estúdio Gota Mágica, sob a direção de Gilberto Baroli (o mesmo
dublador de personagens como o Doutor Benton Quest em as novas aventuras de
Johnny Quest, o Sargento Ibuki em Changeman, os irmãos gêmeos Saga e Kanon em
Cavaleiros do Zodíaco, o Dodoria em Dragon Ball Z e o Doutor Myuu em Dragon
Ball GT).
E a alteração feita nos Estados Unidos veio para cá. Zyosite
foi transformado em mulher e ganhou a voz da dubladora Noeli Santisteban, que em Chaves dublou a Cândida no episódio “Festival de burrice”, a Paty no
episódio “O sonho que deu bolo” e a Glória no episódio duplo “As novas
vizinhas” e a Tetis de Sereia em Cavaleiros do Zodíaco e que naquele mesmo ano
também dublou a Marine (originalmente Umi) em Guerreiras Mágicas de Reyarth, o
Fly e o Goku (ela foi a primeira dubladora do Goku no Brasil, diga-se de
passagem).
Já Kunzite também foi chamado de Malašite por aqui e na
dublagem brasileira ganhou a voz de Ronaldo Artnic, que à época dublou o Geki
de Urso e o Aldebaran de Touro em Cavaleiros do Zodíaco, Hyunkel em Fly: o
Pequeno Guerreiro (originalmente Dragon Quest: Dai no Daibouken) e depois se
tornou o locutor do finado estúdio Álamo.
Foto – Zyosite (direita) e Malašite (esquerda).
Sailor Moon fez um considerável sucesso no Brasil, tanto
entre o público feminino quanto entre o público masculino, a ponto de à época
ser considerado como um anime de garotas que era assistido por garotos.
Entretanto, com a crise que levou à posterior falência da emissora fundada por
Adolpho Bloch as temporadas seguintes não vieram ao Brasil ainda nos anos 1990.
Apenas em 2000, por meio do canal a cabo Cartoon Network e
da Rede Record, é que as fases seguintes da obra de Naoko Takeuči chegaram ao
Brasil. Com as dublagens sendo feitas em outro estúdio: no lugar da Gota
Mágica, que faliu no final dos anos 1990, entra a BKS, tradicional estúdio
paulistano e herdeiro direto da AIC (Arte Industrial Cinematográfica), que à
época também dublou outras produções nipônicas como Sakura Card Captors e
Samurai X e que anos mais tarde dublou Dragon Ball Kai.
Os trabalhos foram feitos sob a direção de Daniela Piquet
(dubladora de personagens como a Sakura em Sakura Card Captors, a Serena em
Sailor Moon R em diante e a Misao em Samurai X) e Márcia Gomes (dubladora de
personagens como a Mai/Change Phoenix em Changeman, Janine em Caça Fantasmas,
Andy Panda em Pica Pau, Glória e Elizabeth em Chaves e Éris no especial O Santo
Guerreiro de Cavaleiros do Zodíaco).
Entre parte do fandom de Sailor Moon, a dublagem da BKS não
é lá muito bem quista, entre outras coisas, por conta das mudanças das vozes
das personagens principais. Visto que nenhuma das dubladoras que dublaram as
sailors em 1996 voltou a dublá-las quatro anos mais tarde.
Foto – Haruka Tenō, a Sailor Urano (direita), e Mičiru Kaiō, a Sailor Netuno (esquerda).
Mais adiante, na Fase S, a terceira fase da obra de Naoko
Takeuči, nós somos apresentados a duas novas heroínas: Haruka Tenō, a Sailor
Urano, e Mičiru Kaiō, a Sailor Netuno. No Brasil, as duas personagens ganharam
as vozes de Rosana Beltrame (voz de personagens como Betty deVille em Rugrats,
Mamãe Urso em Pequeno Urso e avó do Caillou em Caillou) e Márcia Regina (voz de
personagens como a Lenge em Šurato, Misty em Pokémon, Yumi Komagata e Misanagi
em Samurai X e de atrizes como Gwyneth Paltrow, Jennifer Love Hewitt e Scarlet
Johansson), respectivamente.
Haruka e Mičiru são lésbicas e namoradas uma da outra. Tanto
na versão americana quanto na versão brasileira, a relação das duas heroínas
foi transformada em uma relação de parentesco na qual elas foram apresentadas
como se fossem primas muito próximas entre si.
Foto – Olho de Peixe.
Na quarta fase, Super S, somos apresentados ao personagem
Olho de Peixe, membro do Trio Amazonas que é abertamente homossexual e
crossdresser que veste roupas femininas e usa maquiagem. Em determinados
momentos da trama, Olho de Peixe mostrou-se atraído por outros homens. Na
versão americana, Olho de Peixe foi transformado em uma mulher biológica, e
ganhou voz feminina na dublagem em inglês (assim como nenhuma indicação de que
ele é homem).
Na versão brasileira, Olho de Peixe ganhou a voz de Marcelo
Campos, o mesmo dublador de personagens como Roger Klotz em Doug, Jabu de
Unicórnio e Mu de Áries em Cavaleiros do Zodíaco, Šurato no anime homônimo,
Terry Bogard nos OVAs de Fatal Fury, Trunks em Dragon Ball Z, GT e Super, entre
outros.
Também na fase Super S, a vilã Zirconia é transformada em homem,
por conta de temores de que a sua relação com a rainha Nehellenia fosse de
caráter romântico. Já na versão brasileira, Zirconia não passou por essa
mudança de gênero e ganhou a voz da recém-finada Isaura Gomes, a mesma
dubladora de personagens como Jane Jetson em Jetsons, Turanga Leela em
Futurama, Helen Bennett em Seis Biônicos, Betty Rubble em Flinstones e Dona
Clotilde em Chaves (episódios dublados em 2018, no estúdio Som de Vera Cruz).
Foto – Zirconia.
Na versão americana de Sailor Moon, ainda houve outras censuras
menores, incluindo censuras em cenas de transformações e em cenas nas quais os
personagens estão tomando banho. Outros animes, tais como Sakura Card Captors,
também passaram pelo crivo da censura norte-americana da época por motivos
similares (casos sobre os quais pretendo falar em
futuros artigos).
Voltando aos dias de hoje, eu particularmente não consigo entender
como que os Estados Unidos, nessa questão, mudaram tanto de duas décadas e meia
para cá. Antes, esse tipo de conteúdo em produções infanto-juvenis era objeto
de censura (e de forma sensata, diga-se de passagem). Hoje, vemos estúdios como
a Disney e o Cartoon Network produzindo desenhos como Casa Coruja, Steven
Universo e outros, com esse tipo de temática. Tratando desenhos destinados ao infanto-juvenil
como se fosse um anime yaoi enrustido.
Haverá alguma influência de Pink Money nessa história toda ou algo
similar? Haverá alguma engenharia social perversa por trás de tudo isso? Talvez
quem sabe a mesma engenharia social que fará com que um dia seja errado você
ter um cachorro ou um gato em casa, comer carne de verdade (e não certas empulhações que já podem ser vistas nas prateleiras dos supermercados), falar o idioma
pátrio corretamente, ser heterossexual (ou mesmo um homossexual não afeminado),
cis-gênero, professar alguma religião e por ai vai.
Fontes:
Animais Fantásticos: Warner remove cena LGBT na China.
Disponível em: ANIMAIS
FANTÁSTICOS: WARNER REMOVE CENA LGBT NA CHINA - YouTube
China censura diálogo sobre relação gay em Animais
Fantásticos 3. Disponível em: China
censura diálogo sobre relação gay em “Animais Fantásticos 3” - POPline
(portalpopline.com.br)
Representatividade LGBTQI+ em Sailor Moon. Disponível em: Representatividade
LGBTQI+ em Sailor Moon - Valkirias
Sailor Moon (adaptações ocidentais). Disponível em: Sailor
Moon (adaptações ocidentais) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Sailor Moon – 10 coisas que você precisa saber. Disponível
em: Sailor
Moon: 10 coisas que você precisa saber (legiaodosherois.com.br)
Sailor Moon
– 15 ways It was censored in America (em inglês). Disponível em: Sailor Moon: 15 Ways It Was Censored
In America | ScreenRant
Sete animes censurados no Ocidente. Disponível em: 7
animes censurados no ocidente (omelete.com.br)
No tocante a Sailor Moon, muitos fãs consideram a obra como uma espécie de Saint Seiya de saias, ou seja, ambas as personagens servem de homólogos dos Cavaleiros de Atena, tipo as Inner Senshis (Usagi, Makoto, Minako, Ami e Rei) equiparadas aos Cavaleiros de Bronze, e as Outer Senshis (Haruka, Michiru, Hotaru e Setsuna) equiparadas aos Cavaleiros de Ouro. Em muitas fanfics, e até fanarts, elas são retratadas como namoradas dos mesmos. Até Haruka e Michiru, em vez de serem mostradas originalmente como lésbicas, são retratadas como pares de Shura de Capricórnio e Camus de Aquário. Tudo a ver, por sinal.
ResponderExcluirRealmente, depois falam que toda censura é ruim. Uma coisa é vetar conteúdo impróprio para determinado público, o que é certo. Outra coisa é querer silenciar as pessoas às duras penas, o que é errado.
Bem interessante. E a propósito, você já chegou a ver fanfics e fanarts das personagens de Sailor Moon em que as sailors são retratadas fazendo par com os personagens de Samurai Warriors e mesmo de Shurato??
ExcluirNão, mas já vi as Sailors como par dos personagens de Dragon Ball.
ExcluirCom os personagens de Samurai Warriors, daria para fazer os seguintes pares:
ExcluirHector - Rey
César - Lita
Jorge - Ami
Tristan - Minako
Tommy - Serena
Demon - Setsuna
Diavlo - Haruka
Phantom - Michiru
Chronos - Hotaru