sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Black Friday brasileira - fraude ou coisa de rico?


Foto – Meme sobre a Black Friday tupiniquim.
Várias lojas fizeram em todo o Brasil no dia 25 de novembro a grande promoção chamada Black Friday. Black Friday, segundo o artigo da Wikipédia em português sobre o assunto, é um termo criado pelo varejo norte-americano para designar a ação de vendas anual que ocorre na sexta-feira após o feriado de Ação de Graças, e que depois foi difundida para outros países de língua inglesa como o Canadá, a Austrália, a Inglaterra e a Nova Zelândia, assim como para o Brasil (onde o evento se encontra em sua sexta edição). Em outras palavras, a Black Friday trata-se uma ode ao consumismo onde as lojas se livram de seus estoques e o povo vai às lojas como se fosse uma manada enlouquecida, assim como ao colonialismo e a macaquice. Mas esse não é o foco do presente trabalho.
Entretanto, muita gente apelida a versão brasileira da Black Friday de Black Fraude, Black Farsa e apelidos similares. Em seu vídeo sobre o assunto, postado no ano passado, Nando Moura (figura essa da qual discordo de muitas de suas ideias sobre política) definiu a Black Friday brasileira como “uma grande mentira onde tudo é cobrado pela metade do dobro do preço” e que é uma promoção que “só pode ser feita em países onde a taxa de impostos não é tão alta”. E o PROCON[1] em seu site divulgou uma lista de 449 lojas para serem evitadas na Black Friday. Mas afinal, qual será a verdade sobre a Black Friday brasileira e por que os produtos (especialmente produtos eletrônicos de luxo como videogames, televisões de mais de 30 polegadas e tantos outros), mesmo com a promoção do dia, são mantidos com esses preços altíssimos, geralmente proibitivos para pessoas de menor poder aquisitivo? Vou tocar na ferida da questão da Black Friday brasileira da qual quase ninguém fala, a qual tem relação umbilical com a forma com a qual um país como o Brasil está inserido dentro da engrenagem capitalista mundial (a qual recebe nos grandes meios de comunicação o elegante nome de “divisão internacional do trabalho”. Termo esse do qual rejeito por ser elegante demais para o meu gosto), assim como no plano interno dentro do contexto do abismo social entre pobres e ricos que flagela o país desde os primórdios de sua história. Em outras palavras, não vou analisar a Black Friday tupiniquim dentro do prisma do rentismo e do consumismo como o povão vive fazendo, e sim pelo que ela realmente é, como e para que tipo de público ela é pensada e a lógica que a permeia.
Segundo Nildo Ouriques em palestra proferida em 2012, no Brasil existem duas esferas de consumo: uma baixa, de péssima qualidade e de poder aquisitivo restrito, circunscrita aos estratos mais baixos da sociedade, e uma alta, circunscrita à classe dominante e seu altíssimo poder aquisitivo. Tendo em vista tal fato, eu vejo que a Black Friday no Brasil, assim como o consumo de produtos de luxo de modo geral no mercado brasileiro, é pensada dentro da mesma lógica utilizada, por exemplo, na comida gourmetizada que é vendida em locais como Food Trucks (que nada mais são que os bons e velhos carrinhos de lanche, só que de e para rico, onde a comida vendida geralmente nada mais é que as boas e velhas comidas de sempre só que adicionadas de uma montanha de ingredientes que a encarecem consideravelmente) e nos estádios de futebol que foram transformados em arenas (aonde a geral de estádios como o Maracanã foi eliminada e o preço do ingresso, mesmo nos lugares mais baratos, muitas vezes chega a custar de R$ 200,00 para cima) nos últimos anos: algo de usufruto único e exclusivo dos ricos (ou seja, para a alta sociedade brasileira e seus filhos), com a intenção de criar espaços de exclusão social.
Como já mencionado antes, Nando Moura disse em seu vídeo a respeito do assunto que a Black Friday é algo que não pode ser feita em um país como o Brasil, onde a carga tributária é elevadíssima (motivo esse pelo qual a Nintendo no começo de 2015 alegou para justificar o fim de suas atividades no Brasil). E por que ela é elevadíssima? A grande mídia corporativa nacional nunca fala uma única palavra sobre isso, apenas se fala do problema, o povo vive reclamando sem saber da verdadeira destinação dessa dinheirama toda e nada mais. Também se dá a impressão de que o governo fica com todo esse dinheiro (ou ao menos a parte do leão). Só que ninguém fala na mídia mainstream sobre a real destinação da parte do leão do que o governo arrecada todo ano com os impostos cobrados e arrecadados da população. Esse dinheiro todo não é destinado para pagar funcionários públicos, muito menos para investimentos em políticas sociais, educação e saúde pública de qualidade, transportes, forças armadas, assistência social, nada disso. A parte do leão disso vai para pagar os juros e amortizações do serviço do serviço da dívida (tanto interna quanto externa). Em outras palavras, vai engordar o bolso de banqueiros e agiotas. Isso é aquilo que o finado Leonel Brizola chamava de “perdas internacionais”.
Todo ano, o governo destina entre cerca de 40 a 50% do orçamento da União no pagamento daquilo que alguns chamam de “Bolsa Banqueiro”, ao passo que o Bolsa Família que a direita raivosa brasileira vive vociferando contra a ponto de rotulá-lo de “fábrica de vagabundos” consome apenas 0,47% do mesmo orçamento (ou seja, apenas cerca de um ducentésimo). Fazendo uma analogia, é a mesma coisa que alguém pegar uma nota de R$ 100,00 e gastar desse mesmo montante de dinheiro apenas R$ 0,50. E para a classe dominante brasileira (a mesma que foi o braço civil do golpe de 1964 e que hoje se locupleta com o petucanato[2]) isso é ótimo, pois o custo de um programa social como esse é baratíssimo, não toca em seus privilégios e em seus status quo, assim como passa a tratar a questão social não mais como “caso de polícia” como, por exemplo, nos tempos da República Velha (1894 – 1930).
Em outras palavras, para cada R$ 1,00 que os governos Lula e Dilma deram para as classes subalternas através de programas como o Bolsa Família, o mesmo governo através do Bolsa Banqueiro dá cerca de R$ 90,00 a 100,00 para banqueiros e agiotas. E isso explica em parte a razão pela qual os bancos aqui no Brasil têm tido lucros astronômicos (incluindo nas gestões do mesmo PT que a direita raivosa brasileira vive falsamente chamando de comunista, bolivariana, marxista e adjetivos de esquerda similares). Como Nildo Ouriques periodicamente fala, o Brasil, com os gastos anuais com o sistema da dívida, é como se fosse um país em uma situação de economia de guerra. E essa dívida quanto mais se paga mais cresce, e não o contrário: em 1995, na aurora do primeiro governo FHC, essa dívida era de cerca de R$ 64 bilhões. Em 2003, quando FHC entregou o governo à Lula, essa dívida se encontrava no patamar de R$ 720 bilhões. Ou seja, um aumento de 11,25 vezes e uma média de aumento de R$ 82 bilhões por ano nos oito anos de gestão tucana. Quando Lula passou o governo para Dilma em 2011, essa mesma dívida estava em cerca de R$ 1,5 trilhão, e hoje seu montante supera os R$ 3,5 trilhões.
Se nada for feito para reverter essa situação, a tendência é a dívida aumentar ainda mais e sacrificar ainda mais o sofrido povo brasileiro através de ajustes como o que a presidente Dilma fez junto com o então Ministro da Fazenda Joaquim Levy e o que se quer fazer com a aprovação da PEC 241 (que sob o pretexto de ajustar as contas públicas prevê o congelamento de investimento em áreas como saúde, educação e habitação por um período de 20 anos). Que nada mais são que versões tupiniquins das políticas que na Europa a Troika (comissão composta por Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Européia) vive impondo a países como Itália, Espanha, Portugal e Grécia. A Grécia chegou à situação de calamidade sócio-econômica em que se encontra graças às políticas de austeridade que lhe foram impostas pela Troika e postas em ação pela politicalha grega. Será esse o país que queremos para nossos filhos e netos?
A razão pela qual essa dívida tanto cresce é pelo fato de o governo federal e seus economistas, desde o Plano Real em 1994, terem feito políticas de controle de inflação na base de juros altíssimos, os quais não raro alcançavam patamares superiores a 40%. Sendo que a inflação brasileira não é um problema de demanda, e sim de custos, decorrentes desses mesmos altíssimos juros com que se pagam o serviço da dívida. Dívida essa que tem no plano interno alimentado um grande sistema rentista, com os capitais dos vários setores da classe dominante brasileira (incluindo multinacionais, comerciantes, fundos de pensão, banqueiros e latifundiários) dela se alimentando. Para mudar essa situação, será necessária uma auditoria dessa mesma dívida (algo que a Constituição de 1988 prevê, mas que até agora nunca foi feita), similar à feita por Vargas na década de 1930 e mais recentemente por Rafael Correa no Equador em 2007 (a qual eliminou com 70% do montante da dívida equatoriana). Depois de feita a auditoria, será necessária revelar ao mundo as falcatruas e os esquemas de corrupção com os quais esses banqueiros e seus associados estão envolvidos. E, paralelo com a auditoria, há de ser feita também uma grande transformação revolucionária e popular contra a classe dominante brasileira e suas variadas facções.

Foto – Porcentagem dos gastos da União em 2014.
E, além disso, não é só por causa da alta taxa de impostos que os preços desses produtos são elevadíssimos. Assim como acontece com os videogames, por exemplo, existem pessoas aqui no Brasil que tem condição de comprá-los mesmo com seus preços estratosféricos, ainda que seja número pequeno em termos quantitativos (e depois certos incautos falam em “Dilmastation”). E disso o mercado sabe disso muito bem. Esse consumo de produtos de preço mais elevado acaba sendo para as elites uma forma de status social, na medida em que são produtos que apenas eles e ninguém mais consomem. Se alguém de menor poder aquisitivo resolver comprar um produto dessas, vai ter que fazer uma dessas três coisas: ou comprar no exterior ou gastar quase todo seu orçamento nisso ou compra-lo em várias prestações. E assim um sujeito de uma família de elite pode na escola ou em qualquer outro ambiente se gabar do fato de ter certos produtos que seus amigos de menor poder aquisitivo não têm e esfregar isso na cara deles, de forma similar ao que o personagem Kiko de Chaves (originalmente “El Chavo[3] del Ocho”) volta e meia fazia com seus vizinhos menos abastados (em especial o Chaves e a Chiquinha[4]) quando mostrava a eles os brinquedos que ele tinha e eles não. E para um comerciante varejista a diferença é de ínfima para nula entre vender cerca de 10 videogames por R$ 4000,00 e vender 100 videogames por R$ 400,00.

Foto – Ruy Mauro Marini (1932 – 1997), um dos grandes artífices da teoria marxista da dependência.
Nós vivemos em um país periférico dentro da engrenagem capitalista mundial e que é regido por aquilo que o falecido intelectual marxista brasileiro Ruy Mauro Marini chamava de super-exploração da força de trabalho. Segundo Ruy Mauro Marini (um dos muitos intelectuais brasileiros de esquerda perseguidos pela Ditadura Civil-Militar, a ponto de ter sido demitido da UNB[5] por Zeferino Vaz e exilado no Chile e no México, além de em 1978 ter tido uma polêmica com Fernando Henrique Cardoso e José Serra), o conceito de super-exploração da força de trabalho, abordado pela primeira vez em sua obra Subdesarrollo y revolución (1968), consiste dos mecanismos que a burguesia de um país periférico dentro da engrenagem capitalista mundial utiliza para aumentar ainda mais a mais-valia extraída das massas trabalhadoras, já que essa mesma burguesia, por sua condição de sócia minoritária do capital transnacional, tem que repartir essa mesma mais-valia. O resultado prático disso seria a realimentação da situação de dependência em relação aos países centrais da engrenagem capitalista mundial (ou seja, Estados Unidos, Japão, Alemanha, França e Inglaterra) e a manutenção do subdesenvolvimento, mesmo com a industrialização interna. Ou, usando as palavras de Andreas Gunder Frank (1929 – 2005), outro notável artífice da teoria marxista da dependência, o desenvolvimento do subdesenvolvimento (os quais dentro do mundo capitalista em que vivemos nos dias de hoje formam uma relação dialética similar ao Yin e o Yang[6] da simbologia taoísta: dois elementos opostos entre si, mas que ao mesmo tempo se completam um ao outro, ao ponto de um não existir sem o outro e vice-versa).
E que relação isso tudo tem com a versão brasileira da Black Friday? Muita coisa, para não dizer tudo. Primeiro que a super-exploração da força do trabalho depaupera com os salários da classe trabalhadora não só do Brasil como de todo e qualquer país periférico da engrenagem capitalista mundial a ela submetido através da mais-valia adicional, assim prejudicando seu poder aquisitivo. E quem mais sofre com isso obviamente são os setores da sociedade de menor renda. E segundo que com a alta carga tributária os custos decorrentes das altas taxas juros com que o governo todo ano paga o serviço das dívidas interna e externa (e não da corrupção que a grande mídia vive noticiando periodicamente como muitos incautos acreditam de forma errônea. Corrupção essa que assume a função de cortina de fumaça, de forma a desviar a atenção dos olhos da população média quanto a essa situação toda) são repassados para os produtos no mercado através de impostos (tais como IPI, PIS, COFINS e ICMS[7]), com a intenção de ajudar a cobrir esses custos todos do que muitos chamam de “custo Brasil” e que eu chamo de “Bolsa Banqueiro”. E a questão do status social da parte das elites brasileiras acaba servindo de legitimação a essa situação toda.

Foto – Algumas das razões dos altíssimos preços dos produtos da Black Friday tupiniquim.
Fontes:
[TRIELO] Nildo Ouriques – ajuste fiscal – ônus e bônus (marxista). Disponível em:
A anunciada saída da Nintendo do Brasil. Disponível em:
As raízes intelectuais do consórcio petucano. Disponível em:
Assembléia Popular – Tribuna Livre. 19/02/2014. Parte 11. Disponível em:
Black Friday. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Black_Friday
Black Friday x “Black Fraude”, gamers são burros? Disponível em:
Black Friday brasileira: a farsa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gJdSAviLcqQ
Black Friday é enganação! A Farsa da Black Friday no Brasil. Disponível em:
“Black Fraude”: Procon divulga 449 lojas online para evitar nesta Black Friday. Disponível em:
Black Friday: tudo pela metade do dobro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hwxXV4ueRRw
Brasil: crise financeira ou fiscal?. Disponível em:
Conferência Estadual dos Bancários 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0fqoD0RDzY4
Depoimento de Perseu Abramo sobre as ocorrências na Universidade de Brasília. Disponível em:
Gastos com a dívida pública em 2014 superam 45% do Orçamento Federal Executado. Disponível em:
Coluna do Professor Tim sobre o petucanismo – Timtim por TimTim. Disponível em:
Modelo petucano. Disponível em:
O que é Black Friday? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kTmmqPaiDRM
Ruy Mauro Marini. Disponível em:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Ruy_Mauro_Marini


NOTAS:

[1] Programa de Proteção e Defesa do Consumidor.
[2] Petucanato/Petucanismo é um termo cunhado pelo colunista da Revista Caros Amigos Gilberto Felisberto Vasconcellos (e depois utilizado por outros como Nildo Ouriques e Adriano Benayon) para se referir a situação política que o Brasil vive desde 1995 com a alternância de poder entre o PT e o PSDB, dois partidos de programa de governo praticamente igual baseados no modelo neoliberal (incluindo privatizações, terceirização e precarização do Estado), com a diferença que o PT têm um política um pouco mais direcionada para o lado social que o PSDB.
[3] Leia-se “Tchavo”, pois no espanhol, assim como em idiomas como o russo, o inglês e o mandarim, a partícula ch tem valor de tch.
[4] Originalmente Chavo e Chilindrina, respectivamente.
[5] Universidade Nacional de Brasília.
[6] Leia-se Yan. No mandarim, assim como no francês, quando uma palavra termina em consoante, a última é sempre muda.
[7] Imposto sobre Produtos Industrializados, Programa de Integração Social, Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social e Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, respectivamente.

Um comentário:

  1. A "Black fraude" não passa de mais uma invenção do comércio pra lucrar em cima da boiada, digo, consumidores. Agora no aguardo do belo post sobre a morte do Comandante Fidel, o pesadelo da burguesia e do imperialismo norte americano.

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