quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Escola sem Partido - do que se trata? Parte 6


Foto – Logo do Escola sem Partido.
Na primeira parte da série de artigos a respeito do Escola sem Partido, falamos a respeito da ligação entre o crescimento do movimento proposto pelo advogado Miguel Nagib (que existe desde 2004) e a falência político-ideológica do petismo e a onda conservadora que o país vive  no presente momento (a ponto de ter hoje aquilo que muitos chamam de “O Congresso mais conservador desde 1964”). Na segunda parte, falamos sobre a questão econômica envolvida e a repercussão que os comentários de Leandro Karnal sobre o Escola sem Partido teve. Na terceira parte, falamos a respeito da questão do partidarismo da mídia de massa e do Projeto de Lei 5921/2001, de autoria de Luís Carlos Hauly (PSDB-PR), que gerou grande polêmica em 2014, quando a questão da publicidade infantil foi tema do ENEM daquele ano. Na quarta parte, falamos a respeito da questão do partidarismo dos tribunais e da Operação Lava Jato. Na quinta parte, falamos a respeito da questão daquilo que Nildo Ouriques e Waldir Rampinelli Júnior chamam de o sistema de produção mundial de conhecimento. E agora na sexta parte falaremos a respeito da questão do Estado moderno e da democracia.
Em um trecho do Manifesto do Partido Comunista (1848), Karl Marx (o mesmo Marx de que a direita raivosa brasileira em suas periódicas manifestações de rua vive dizendo que deveria ser menos ensinado nas escolas e universidades em detrimento de figuras como Ludwig von Mises – que por sua vez não tem a mesma importância nas ciências sociais que Marx tem) classificou o estado moderno como um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa, que por sua vez o mantem em uma espécie de relação parasitária com o intuito de manter seu controle sobre a sociedade.

Foto – O governo Temer e a atualidade do que Marx disse a respeito do caráter de classe do Estado moderno em o Manifesto do Partido Comunista.
Depois de Marx, outros também perceberam o mesmo caráter não apenas do Estado moderno como também da democracia burguesia moderna. Um deles foi o romeno Corneliu Zelea Codreanu, um dos líderes do movimento de Extrema Direita Guarda de Ferro (Garda de Fier em romeno) no período de 1927 a 1938, que em texto escrito em 1937 afirmou que a democracia, entre outras coisas, “destrói a unidade da nação romena”, “é incapaz de perseverança”, “evita a total responsabilização dos políticos com suas obrigações com a nação”, “não pode governar com autoridade” e, o mais importante de tudo para o tema do presente artigo, “a democracia serve aos grandes negócios”. Codreanu ainda aponta no mesmo texto que a democracia, por requerer amplos fundos para o sistema multipartidário, acaba se tornando uma “serviçal dos grandes financistas internacionais judaicos, que escravizam a democracia tornando-se seus pagadores. Desse modo, o destino de uma nação é colocado nas mãos de um grupo de banqueiros”.

Foto – Corneliu Zelea Codreanu (1899 – 1938) sobre a democracia dos dias de hoje. Crédito: Avante.
Mais recentemente, o escritor português José Saramago e o pensador francês Alain Soral também tocaram nesse assunto. Em discurso proferido em 2008, Saramago disse que a democracia é a única coisa que não se discute nos dias de hoje, que ela é como se fosse uma santa do altar, classificou a democracia atualmente vigente no Ocidente como “sequestrada”, “amputada” e “condicionada” e ainda disse que o poder do cidadão nesse sistema se limita a tirar um governo de que não gosta e em seu lugar colocar outro que talvez venha a gostar. Assim como o fato de quem decide as grandes decisões nesse sistema são organismos como o FMI, a OMC e bancos mundiais, os quais o escritor lusitano classificou como antidemocráticos. “E, portanto, como falar em democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os respectivos povos? Não! Onde está então a democracia?”, assim o escritor lusitano e prêmio Nobel de literatura em 1998 concluiu sua fala no discurso em questão.
No vídeo “Porque a política não é a solução”, Alain Soral afirmou que “eu penso que aquilo que chamamos de democracia e que se chama no meu livro de ‘democracia de mercado e opinião’ e quando pensamos bem como é colocada, é o poder dos mais ricos”, um sistema onde o político não consegue fazer política de fato devido aos curtos prazos de que dispõe, já que no prazo de meia década terá que disputar uma eleição e dependendo de seu resultado deixar o cargo que ocupa. Em tal sistema, ainda segundo o pensador francês (o qual em algumas passagens do vídeo se diz antidemocrático), o que se vê é uma compra da opinião pelo mercado, com esta decidindo a eleição em favor do segundo.

Foto – José Saramago sobre a democracia dos dias de hoje.
Marx no século XIX, Codreanu no século XX, Saramago e Soral no século XXI. O que todos eles, cada um seu respectivo tempo, quiseram dizer com tais afirmações? Que o Estado moderno e o sistema democrático que o personifica nos ditos “países livres e democráticos”, tal qual a mídia de massa, os tribunais e o sistema de produção mundial de conhecimento que foram mencionados nos artigos anteriores dessa série, é uma instituição partidária em favor dos grandes capitalistas e seus interesses de classe. Em outras palavras, não é uma entidade abstrata que se encontra acima das classes sociais como muitos ingênuos pensam, e sim uma entidade que tem seu caráter classista.
Primeiro de tudo, uma consideração há de ser feita sobre que democracia se está falando e seu caráter. A democracia de que Codreanu, Saramago e Soral falam é a democracia do tipo representativa, onde a participação do cidadão no processo político se resume a votar em um candidato a determinado cargo em uma eleição a cada quatro ou cinco anos. E ai quando o dito cujo chega ao poder ele acaba realizando um governo muito mais voltado aos reais donos do poder que para as demandas de seus eleitores. Em outras palavras, uma democracia sem povo e sem substância. Ou segundo as palavras de Alain Soral, “A democracia representativa é antidemocrática”. E esse é o tipo de democracia que aqui no Brasil é defendida por figuras ideologicamente tão díspares como Jair Bolsonaro e seus filhos e José Serra. Não é uma democracia do tipo participativa, como a que havia na Líbia durante a era Kadaffi ou o que se tem na Venezuela bolivariana, onde a participação do povo nas decisões do processo político é muito maior.
Segundo Jessé de Souza em entrevista concedida ao site ocafezinho em 12 de abril de 2016, os grandes capitalistas são a verdadeira elite no mundo em que vivemos devido ao fato de que ela compra todas as demais (política, intelectual, mídia) com seu dinheiro para dizer o que quiserem. Em outras palavras, um aparelhamento do Estado não através de uma ocupação direta de cargos estratégicos, e sim o amarrando e o controlando através de seus tentáculos, como se fosse um polvo (onde será que ouvimos essa história de aparelhamento do Estado?). E ainda segundo o sociólogo potiguar na mesma entrevista, eles é que são os grandes interessados na demonização do mesmo Estado na medida em que o tendo sob seu controle podem se beneficiar de um modelo de caráter monopolista, oligopolista e muito caro em que eles são os grandes beneficiários. Tal demonização, que tem entre seus principais reprodutores liberais do tipo Kim Kataguiri e afins, acaba justificando perante a população o já citado papel do Estado enquanto balcão de negócios da burguesia e assim todo aquele estadista que resolver colocar rédeas curtas em suas atividades acaba sendo satanizado ante a população por toda essa estrutura que os grandes capitalistas possuem do seu lado. Tudo isso segundo a já mencionada lógica oriunda do pensamento de John Locke, que em seu livro “Dois Tratados sobre o Governo” definiu como despótico todo governo que atenta contra a propriedade privada, e dessa forma, a liberdade dos homens de negócio, os quais na condição de senhores proprietários e escolhidos por Deus tinham todo o direito de castigar da forma mais brutal possível seus opositores. Tal lógica, segundo o professor Ramez Maalouf, esteve presente nas duas invasões anglo-americanas ao Iraque (1991 e 2003), que derrubou o regime de Saddam Hussein e abriu o caminho para o surgimento de grupos como o Estado Islâmico através do vácuo de poder produzido pela deposição e posterior morte de Saddam Hussein.

Foto – “Democracia é o governo dos mais ricos” – Alain Soral. Crédito: Avante.
Com esse poder em mãos, os grandes capitalistas fazem do Estado uma espécie de balcão para administrar e levar adiante seus negócios particulares, de forma a fazer com que as políticas desse mesmo Estado lhes favoreçam (haja vista que no Brasil sob os governos Lula e Dilma ao mesmo tempo em que programas sociais como o Bolsa Família ajudaram a tirar milhões da linha da pobreza os banqueiros e outros rentistas ligados ao sistema da dívida tiveram ganhos bilionários). E isso mesmo o Brasil tendo passado 13 anos sob o governo do Partido dos Trabalhadores, um partido de corte popular e de massas. Portanto, independente de quem esteja ocupando a chefia de uma nação, quem detêm o poder de fato são os grandes capitalistas e não o fulano que foi eleito pelo voto das pessoas e ocupa a cadeira presidencial (o qual em realidade não passa de um gerente que administra o estado em favor de seus patrões e que por sua vez quando explode uma crise em que seu mandato é ameaçado é comumente feito de bode expiatório perante a população). Assim, governos de diferentes partidos entram e saem na chefia de uma nação, mas aqueles que mandam por trás das cortinas continuam os mesmos.
No caso específico brasileiro, existe aquilo que alguns (entre eles Nildo Ouriques) chamam de a República Rentista e que Jessé de Souza chama de a elite da rapina. Tal elite é composta entre suas fileiras pela fina flor do rentismo brasileiro (incluindo banqueiros, corretoras, latifundiários, multinacionais, grandes comerciantes, fundos de pensão e outros), os quais fazem fortuna assaltando continuamente o Estado brasileiro através do sistema de multiplicação de dívida e das altíssimas taxas de juros com que se pagam os serviços e as amortizações dessa mesma dívida (além de fazer lobby na política e na mídia para que tais taxas continuem em seus altíssimos patamares, assim como todo o possível para que não se avance um único milímetro na direção de uma auditoria dessa mesma dívida, que é uma exigência da Constituição de 1988). Todos eles organizados de acordo com o pacto de classes firmado em 1994 que deu origem ao Plano Real. Tal elite que, além de ser a verdadeira quadrilha-mor do país (a ponto de pagar quase nada de impostos e ter uma estrutura tributária que lhe favorece), historicamente sempre tratou o Estado brasileiro como seu balcão de negócios particular e sempre foi mancomunada com negócios internacionais. Darcy Ribeiro, em entrevista ao programa Roda Viva em 1988, classificou tal estamento social com adjetivos tais como azeda, ranzinza, medíocre, cobiçosa e como a responsável pela situação de subdesenvolvimento do Brasil em relação às Grandes Potências. E, para salvaguardar seu status quo privilegiado ante as reformas de base do presidente João Goulart, essa mesma elite não teve o menor pudor em recorrer aos militares em 1964.
Resumindo a ópera, percebe-se que no mundo em que vivemos o Estado não é um instrumento para levar o bem comum a toda a população, e sim o balcão de negócios da burguesia de que Marx falou ainda em 1848. E essa é a democracia (que em realidade não passa de uma plutocracia travestida) onde os grandes capitalistas são o poder por trás do trono que Letícia Sabatella disse que “é a nossa única chance de convivência saudável” em carta publicada no dia 12 de agosto de 2016 onde a atriz global repudiou o golpe de estado policial-judicial-midiático desse ano. E em defesa dessa mesma democracia e suas instituições que a presidente afastada Dilma Rousseff, em carta enviada ao Senado e ao povo brasileiro no dia 16 de agosto de 2016, disse que é o único caminho para combater a presente crise econômica e política, para a construção de um Pacto pela Unidade Nacional, Desenvolvimento e Justiça Social, que precisa ser fortalecida, que a defesa da democracia é o lado certo da história, que vai lutar com todos os instrumentos legais de que dispões para assegurá-la e que há de vencer.
Percebe-se que Dilma em momento algum questiona em suas falas na carta em questão o modelo de democracia vigente nos dias de hoje. E segundo que nessa defesa da democracia sem questionamento algum sobre sua estrutura vemos a ex-pedetista se igualar a figuras como Jair Bolsonaro (o mesmo Bolsonaro que dizia que nos idos de 2009 e 2010 que ela não podia ser eleita presidente por causa de seu passado como guerrilheira e que homenageou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra na Câmara dos Deputados em seu voto favorável ao impeachment na Câmara dos Deputados). Ou seja, defendendo-se da ação de golpistas e daqueles que pedem intervenção militar se agarrando na defesa de um regime que em realidade é também uma ditadura, a ditadura do poder econômico, que diante de nós não se assume enquanto tal. Paradoxal, no mínimo. E o pior é vê-la entregar a carta a um órgão, o Senado, que é composto em grande parte gente como Ronaldo Caiado, Antônio Anastasia e Magno Malta, que querem sua cabeça a todo custo e que para atingir seus objetivos não tem o menor pudor em se valer dos mais baixos expedientes, tais como golpes de Estado, rasgar constituições, mentir, inventar histórias fantasiosas (como foi o caso das pedaladas fiscais, algo que Antônio Anastasia, que foi o relator da comissão de impeachment no Senado, fez a rodo quando foi governador de Minas Gerais) e instituir um estado de exceção tal qual foi feito em 1964.

Foto – A real estrutura de poder no mundo em que vivemos.
Fontes:
Alain Soral – por que a política não é a solução? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=euAhXduFbMs
Bolsonaro – Leitura do verdadeiro curriculum vitae de Dilma Rousseff. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qxLWWjW3T_8
Corneliu Zelea Codreanu – Observações sobre a democracia. Disponível em: http://acaoavante.blogspot.com.br/2016/07/corneliu-zelea-codreanu-observacoes.html
Crise fiscal ou financeira? Disponível em: http://www.iela.ufsc.br/noticia/crise-fiscal-ou-financeira
Darcy Ribeiro, sobre a elite brasileira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SX5O-IAyO38
Em três anos, Anastasia cometeu quase mil pedaladas no governo de Minas. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/04/em-tres-anos-anastasia-cometeu-quase-mil-pedaladas-no-governo-de-minas-5882.html
Jessé de Souza: impeachment é mentira das elites para enganar pobres e classe média. Disponível em: http://www.ocafezinho.com/2016/04/13/jesse-de-souza-impeachment-e-mentira-das-elites-para-enganar-pobres-e-classe-media/
José Saramago – “onde está, então, a democracia?” Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LbsV_rP6zY0
José Saramago sobre a democracia. Disponível em: http://almaacreana.blogspot.com.br/2013/07/jose-saramago-sobre-democracia.html
Nildo Ouriques – A República Rentista. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mGw7IZLowQw
Nildo Ouriques – o assalto ao Estado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=h28k0Rkurik
Nildo Ouriques – o pacto de classes feito no governo FHC. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9KmUe3hp-II
Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (2). Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10102:submanchete021014&catid=80:ramez-philippe-maalouf&Itemid=203
Sabatella – democracia é nossa única chance de convivência saudável. Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/cultura/249297/Sabatella-democracia-%C3%A9-nossa-%C3%BAnica-chance-de-conviv%C3%AAncia-saud%C3%A1vel.htm


Um comentário:

  1. Devo dizer que esta série sobre o Escola Sem Partido está absolutamente magistral, ficando melhor a cada capítulo. Isso merecia virar um livro!

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