Foto
– Logo do Escola sem Partido.
Na primeira parte da
série de artigos a respeito do Escola sem Partido, falamos a respeito da
ligação entre o crescimento da proposta do advogado Miguel Nagib (que existe
desde 2004) e a falência político-ideológica do petismo e a onda conservadora
que o país vive no presente momento (a
ponto de ter hoje aquilo que muitos chamam de “O Congresso mais conservador
desde 1964”). Na segunda parte, falamos sobre a questão econômica envolvida e a
repercussão que os comentários de Leandro Karnal sobre o Escola sem Partido
teve. Na terceira parte, falamos a respeito da questão do partidarismo da mídia
de massa e do Projeto de Lei 5921/2001, de autoria de Luís Carlos Hauly
(PSDB-PR), que gerou grande polêmica em 2014, quando a questão da publicidade
infantil foi tema do ENEM daquele ano. Na quarta parte, falamos a respeito da
questão do partidarismo dos tribunais e da Operação Lava Jato. Afinal, se os
partidários do Escola sem Partido (tanto da ala socialdemocrata quanto da ala
neoconservadora) fazem tanta questão de exigir isenção ideológica da parte dos
professores de esquerda em sala de aula, por que não fazer o mesmo também com a
mídia de massa e os tribunais, que são tão ou mais partidários quanto os
primeiros? E agora na quinta parte falaremos a respeito daquilo que Nildo
Ouriques e Waldir Rampinelli Júnior chamam de o sistema de produção mundial de
conhecimento.
Como já mencionado nos
artigos anteriores a respeito do Escola sem Partido, os elementos mais raivosos
da direita (entre eles Maro Filósofo, Nando Moura, Paula Marisa e tantos
outros), vivem se queixando de que nas escolas e universidades brasileiras
existe um predomínio esquerdista devido ao fato de que grande parte de seus
docentes terem um direcionamento ideológico mais voltado à esquerda e não a
direita. Entretanto, eles, tacanhos do jeito que são, não percebem que, muito
embora existam de fato esses professores de esquerda que de vez em quando fazem
sua pregação ideológica, o mesmo não se verifica com a produção de conhecimento
científico nas mesmas, que por sua vez está inserido e ordenado dentro da
lógica de acumulação capitalista.
Para começo de conversa,
o que consiste esse sistema mundial de produção de conhecimento e o que ele
faz? De acordo com um trecho do texto “Ciência e Pós-Graduação na Universidade
Brasileira”, trata-se de uma articulação entre o Estado nacional de um país
central da engrenagem capitalista mundial, universidade e empresa multinacional,
com a intenção de manter sob o controle capitalista o desenvolvimento e a
aplicação tecnológica da ciência. E qual será que é a bandeira partidária desse
sistema de produção de conhecimento? O partido do status quo dos grandes capitalistas, já que esse sistema, junto com
outros órgãos como a mídia de massa faz parte de seu aparato de poder
ideológico e que cuja produção científica de forma alguma questiona a lógica de
acumulação capitalista. Assim como o fato de que as descobertas científicas que
são produzidas por esse sistema posteriormente aparecem no mercado sob a forma
de produtos vendidos por empresas multinacionais.
A simples existência
dessa fuga de cérebros para os países centrais é extremamente danosa para os
países de origem desses cientistas, podendo ser tão ou mais nocivo quanto
guerras ou mesmo catástrofes naturais como furacões, terremotos, enchentes devastadoras,
crises de fome ou epidemias. Mas, se esse sistema de atuação global, que visa
acima de tudo perpetuar o poder das nações centrais sobre as nações periféricas,
é tão danoso para as segundas, por que será que sua máscara ainda não caiu
perante o mundo? Simplesmente porque os grandes meios de comunicação, que
também estão a serviço do capital e seus agentes, escamoteia essa realidade a
todos nós, o apresentando não como ele realmente é e suas consequências nefastas,
e sim como um estímulo à meritocracia (a mesma meritocracia que a direita raivosa
tanto fala em suas ilações costumeiras contra o Estado) e algo que propiciará
aos cientistas das nações periféricas o acesso a tudo que há de mais moderno em
termos de tecnologia e ciência. Além disso, há também aqueles que se beneficiam
desse sistema, entre eles o professor individual que dele participa e o
programa de pós-graduação que é avaliado pela CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior) e seu sistema de pontuação. Até
hoje, o único que eu vi falando sobre esse assunto é o Nildo Ouriques em alguns
textos e palestras.
Em outras palavras, isso
que os países centrais fazem com os países periféricos (e com a anuência de
seus governantes, diga-se de passagem) nada mais é que reproduzir a mesma
lógica presente em acordos comerciais desiguais como o de Methuen entre
Portugal e Inglaterra (1703), o de Eden-Rayneval entre França e Inglaterra
(1786) e os tratados desiguais que a China foi submetida no decorrer do século
XIX, só que aplicada para a produção científica. Nesses acordos, o país de
economia mais fraca concedia a um país de economia mais forte matérias primas
baratas (vulgo commodities), e em troca recebia do país de economia mais forte
produtos industrializados com valor agregado muito maior. Obviamente que o país
de economia mais forte saia-se beneficiado em detrimento do país de economia
mais fraca, que por sua vez acumula déficits e mais déficits em sua balança
comercial.
No caso específico do
tratado de Methuen (também conhecido como o tratado de panos e vinhos),
Portugal vendia à Inglaterra seus vinhos e em troca recebia os tecidos
manufaturados britânicos (os mesmos tecidos manufaturados que mais ou menos na
mesma época ajudaram a arruinar com a produção têxtil indiana), e com o tempo
os rombos na balança comercial advindos desse tratado foram se acumulando para
o lado de Portugal (já que os tecidos ingleses tinham um valor agregado muito
maior que os vinhos portugueses), e para cobri-los a coroa lusitana utilizou-se
do ouro extraído no Brasil. Isso também destruiu com as poucas fábricas
existentes em solo lusitano e impediu uma diversificação da economia portuguesa,
ao mesmo tempo em que grande parte das terras cultiváveis portuguesas era
destinada à atividade vinicultora. Durante o reinado de Dom José I (1750 –
1777), o marquês de Pombal tentou reverter essa situação, mas seu intento não
contou com o apoio da aristocracia lusitana (que era ligada à atividade
vinicultora), e ao final do século XVIII, com o esgotamento do ouro no Brasil, a
economia portuguesa voltou a ser assolada por uma grave crise econômica. Com o
ouro vindo do Brasil através de Portugal, a Inglaterra, por sua vez, pode
viabilizar sua Revolução Industrial e ainda financiar suas guerras da segunda
metade do século XVIII e primeira metade do século XIX. No fim das contas, o
ouro e o vinho não geraram um processo de industrialização e modernização da
economia portuguesa, já que não houve o devido protecionismo ao mercado interno
lusitano e os investimentos na estrutura produtiva do país. Ao final do mesmo
século, houve ainda a versão francesa do tratado de Methuen, o tratado de
Eden-Rayneval, o qual destruiu com a indústria francesa e através de suas
consequências nefastas ajudou a preparar o terreno para a Revolução de 1789.
Foto
– A negociação do Tratado de Methuen em quadrinhos.
De forma análoga ao que
aconteceu no intercâmbio comercial anglo-lusitano no decorrer do século XVIII, esse
sistema promove um intercâmbio científico extremamente desigual entre os países
periféricos e os países centrais da engrenagem capitalista global. Os
cientistas e pesquisadores de nações periféricas, do alto de sua ingenuidade,
publicam seus artigos (também conhecidos como papers) em uma revista
estrangeira (que não raro são chamadas de revistas internacionais, sendo que em
realidade não passam de revistas de universidades dos países centrais). Todo
esse conhecimento é recolhido pela já mencionada articulação entre estado,
universidade e empresa multinacional. Desse trabalho se origina um produto que
é vendido por uma multinacional nas farmácias da periferia capitalista e que
agrega consigo uma patente onde em seu preço de mercado estão embutidos
royalties. E quando esse mesmo pesquisador tem um problema como uma gripe ou uma
dor de cabeça, compra na farmácia esse mesmo produto que ele ajudou a criar ao
mesmo tempo em que paga royalties para o exterior. Em outras palavras, trata-se
de mais uma modalidade daquilo que o finado Leonel Brizola chamava de “perdas
internacionais”. O fato é que quanto mais a produção científica brasileira se
internacionalizou e produziu papers em revistas estrangeiras, mais royalties o
país pagou para o exterior (valor esse que subiu de R$ 260 milhões em 1994 para
R$ 4 bilhões em 2014), e assim ajudando a aumentar ainda mais a sangria anual
de dinheiro para o exterior, que já é enorme devido às altas taxas de juros com
que se pagam o serviço das dívidas interna e externa (e para variar a gritaria
em torno disso é nula, enquanto que a gritaria em torno de um político de uma cidade
qualquer pego em algum escândalo de corrupção é enorme). Exemplo disso é o caso
da copaíba, uma planta sul-americana com propriedades anticancerígenas e
analgésicas, sobre o qual o então ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil,
Aloísio Mercadante, falou em palestra na 63ª reunião da SBPC (Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência), em 2011. Cerca de 80% das publicações
sobre o óleo de copaíba são feitas por pesquisadores brasileiros, mas ao mesmo
tempo o Brasil não tem nenhuma patente, já que essas publicações em sua grande maioria
são feitas em papers publicados nas ditas revistas internacionais. Isso ao
mesmo tempo em que os Estados Unidos possuem 17 delas, a Inglaterra sete e a
China três. Se o tratado de Methuen é também chamado de o tratado de panos e
vinhos, esse intercâmbio científico desigual entre nações também pode ser muito
bem chamado de o intercâmbio de papers e royalties.
Nos meios científicos
brasileiros, principalmente do governo FHC em diante, a publicação de papers de
pesquisadores brasileiros nas famigeradas “revistas internacionais” tornou-se
muito comum, ao ponto de no sistema de pontuação da CAPES valer mais pontos para
um pesquisador publicar um artigo em língua estrangeira em revistas de países como
Estados Unidos, França, Reino Unido e Alemanha que em uma revista nacional. Tal
sistema, que alguns chamam de “publicar ou perecer”, foi imposto pelo Banco
Mundial e instituído por Paulo Renato Souza (Ministro da Educação do Brasil no
governo FHC, falecido em 2011). De acordo com suas regras, a vitalidade de um
pesquisador é dada não pela qualidade de seus trabalhos publicados, e sim pela
quantidade de artigos/papers que publica em revistas. E ao escolher publicar
nessas revistas gringas em detrimento de revistas nacionais, o professor
brasileiro, além de fazer o papel de mais um operário em sua linha de produção,
enfraquece o ambiente em que efetivamente trabalha, sabota o dialogo com grupos
nacionais de pesquisa, debilita revistas nacionais indispensáveis em algumas
áreas e não se dá conta de que agindo dessa forma está apenas fortalecendo a
produção científica dos países centrais. Assim como ajuda a perpetuar a
situação de atraso, raquitismo e dependência tecnológica do país em relação às
grandes potências, tal qual o tratado de Methuen fez com a economia portuguesa
no século XVIII e o tratado de Eden-Rayneval fez com a economia francesa às
vésperas da Revolução de 1789.
Foto
– Paulo Renato Souza (1945 – 2011).
Esse mesmo professor, que
não raro tem o título de mestre e/ou de doutor e pensa que universidades como
Harvard, Sorbonne, Yale e Cambridge são internacionais (sendo que em realidade estão
a serviço dos interesses de seus respectivos países), depois fica se
vangloriando perante o mundo de ter publicado artigo em revista estrangeira, em
realidade é tão ou mais alienado quanto o operário que trabalha horas a fio no
chão de uma fábrica de uma empresa multinacional. A única diferença entre os
dois é que o professor em questão é um alienado gourmet, gerado em grande
medida pela glamourização que esse sistema recebe dos grandes meios de
comunicação. Em outras palavras, tais profissionais agem como se fossem parte
do proletariado externo científico das nações capitalistas centrais,
parafraseando Darcy Ribeiro, e o desenvolvimento da ciência brasileira do
governo FHC em diante tem sido em realidade um desenvolvimento de seu subdesenvolvimento,
parafraseando André Gunder Frank, na medida em que se voltou muito mais para
atender às demandas vindas de fora que aos interesses reais da nação.
E a universidade
brasileira, onde ela entra nessa história toda? Historicamente, a universidade
brasileira sempre teve uma vocação colonial que remonta à fundação da USP em
1934 e que se agravou a partir do golpe civil-militar de 1964 com a difusão do
modelo cosmopolita uspiano para todo o país e a extinção do carioca ISEB (Instituto
Superior de Estudos Brasileiros) e a castração da UNB (Universidade de
Brasília) sob os auspícios de Zeferino Vaz, no que fez o centro da vida intelectual
brasileira transferir-se do Rio de Janeiro para São Paulo. Tal tradição
cosmopolita seguiu adiante após o fim da ditadura, e mesmo os petistas no
governo não reverteram esse quadro. Pelo contrário, foi sob a gestão petista
que o Programa Ciência sem Fronteiras foi instituído, que sob o pretexto de
promover a consolidação e a expansão da ciência brasileira através do
intercâmbio internacional tem promovido uma fuga de cérebros para o exterior
que nós mesmos financiamos. Tanto os Estados Unidos quanto a Europa, devido a
suas baixas taxas de natalidade, não produzem todos os cientistas e técnicos
nos vários campos do conhecimento de que necessitam para a manutenção de suas
respectivas máquinas científicas, e para suprir essa carência recorrem a
programas destinados a atrair professores e estudantes dos países periféricos.
E é ai que entram os programas que universidades como Harvard fazem (com a
carta branca de nossas universidades) em cidades como São Paulo, onde se
selecionam estudantes para as mais diversas carreiras universitárias.
Isso tudo desmonta ideias
errôneas e falsas de que a universidade brasileira é uma instituição revolucionária
(assim Maro Filósofo a caracterizou em seu vídeo a respeito dos comentários de
Leandro Karnal sobre o Escola sem Partido). Afinal, como chamar a universidade
brasileira de revolucionária sendo que ela, para começa de conversa, demonstra
um silêncio tumular quanto a figuras como Ruy Mauro Marini, Alberto Guerreiro
Ramos, André Gunder Frank, Álvaro Viera Pinto e outros próceres do pensamento
crítico latino-americano (silêncio esse que começou a partir do golpe de 1964 e
que se arrasta até hoje), além de ter sua carga colonial que remonta aos seus
primórdios e da qual não se livrou até hoje, assim como o fato de estar
envolvida dentro desse sistema de atuação global? Pelo visto esses neocons de
plantão só têm olhares para o que se passa nos escalões mais baixos das escolas
e universidades brasileiras. Ao passo que o mesmo não se verifica com o que se
passa nos escalões mais altos. Sendo que problemas como a perda anual através
dos pagamentos de royalties e a fuga de cérebros para o exterior são muito mais
graves que a pregação ideológica de um professor de esquerda em sala de aula. Só
espero que um dia a máscara desse sistema caia, de forma a fazer com que a
comunidade científica não só do Brasil como também de todos países da periferia
capitalista tomem a vergonha necessária e deixe de fazer o papelão ridículo (no
caso específico brasileiro, desde no mínimo 1994). Assim como que todos aqueles
responsáveis por essa tragédia científica (o que infelizmente não vai ser
possível com Paulo Renato) sejam devidamente submetidos a julgamento público e
punidos.
Foto
– Charge ironizando a suposta isenção ideológica do Escola sem Partido.
Fontes:
A copaíba não é nossa.
Disponível em: http://pesquisastecnologicas.com.br/site/?p=254
A falência do sistema
ptucano. Entrevista especial com Nildo Ouriques. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/541200-a-falencia-do-sistema-politico-ptucano-entrevista-especial-com-nildo-ouriques
A xepa da comunidade
científica. Disponível em: http://www.administradores.com.br/artigos/academico/a-xepa-da-comunidade-cientifica/82447/
A Universidade
Necessária: reforma curricular e utilidade da história – Nildo Ouriques (ENEH
2013). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qIAbNxrN8Fs
André Gunder Frank.
Disponível em: http://resistir.info/mreview/gunder_frank.html
Ciência e Pós-Graduação
na Universidade Brasileira – Nildo Ouriques. Disponível em: http://pt.slideshare.net/AfonsoHRAlves/cincia-e-ps-graduao-na-universidade-brasileira-nildo-ouriques
Datas inglórias e
“Tratado de Methuen”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aQA-AedR6Hg
Leandro Karnal e Escola
sem Partido. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zCtKJxIoX2E
Nildo Ouriques –
colonialismo mental e universidade brasileira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KrknBXm3MvA
Nildo Ouriques – O
intelectual “cosmopolita” da periferia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OqItyJR3tso
O Brasil como problema.
Disponível em: http://www.casadobruxo.com.br/ilustres/darcy_prob.htm
Revolução Francesa (1789
– 1815). Disponível em: http://memoriarimacomhistoria.blogspot.com.br/2010/08/revolucao-francesa1789-1815.html
Sobre a universidade
nacional. Disponível em: https://issuu.com/ayrtoncruz/docs/subtr__picos_n001/12
Tempos, espaços e
protagonistas. Disponível em: http://susanahistoriab.blogspot.com.br/2010/12/tratado-de-methuen.html
Tratado de Methuen.
Disponível em: http://brasilescola.uol.com.br/historiag/tratado-methuen.htm
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