domingo, 18 de setembro de 2022

O elefante na sala e a controvérsia da Pequena Sereia negra da Disney

Foto – A nova Pequena Sereia.

No inglês, há uma expressão chamada “an elephant in the room” (algo como um elefante na sala). Segundo o dicionário online da Cambridge, essa expressão se refere a uma situação na qual há um problema óbvio ou uma situação difícil que as pessoas não querem falar a respeito. É uma expressão que remonta à fábula “O Homem Inquisitivo”, escrita pelo russo Ivan Krylov (1769 – 1844) em 1814, que fala sobre um homem que vai a um museu e nota todo tipo de coisas pequenas, mas não nota um elefante. Depois se tornou de uso corrente no inglês e até mesmo no português.

Recentemente, imagens e até mesmo um trailer do longa em live action do filme “A Pequena Sereia”, da Disney que será lançado no próximo ano foram divulgadas. O filme será dirigido por Rob Marshall e está programado para ser lançado nos cinemas americanos em 26 de maio de 2023.

A grande novidade é que a protagonista do filme, Ariel, será interpretada pela atriz e cantora Halle Bailey, uma atriz afro-americana de 22 anos de idade cujo currículo inclui participações em seriados de TV como The Ellen Show, Austin e Ally e The Kelly Clarkson show e filmes como Beyoncé: Lemonade e Kids are alright.

Como não poderia deixar de ser quando o assunto se trata de produções do conglomerado cinematográfico, o assunto repercutiu e muito nas redes sociais e dividiu opiniões. Halle Bailey foi alvo até de ofensas por parte de alguns que não gostaram da decisão da Disney (algo que nós repudiamos e rechaçamos).

Muitos foram contra sob a alegação de que a Ariel original tem pele clara e cabelos ruivos e que isso descaracteriza o personagem. Já outros, como de praxe, foram a favor dessa mudança sob alegações como o combate ao racismo e a representatividade negra.

Entretanto, esse tipo de coisa de forma alguma valoriza o negro. Pelo contrário, isso que está se fazendo é uma falsa inclusão, uma representatividade negra forçada, uma tentativa de valorizar o negro que no fim das contas gera o efeito contrário.

A valorização real do negro é pegar o folclore, as lendas e os contos africanos e criar histórias e filmes baseados neles, nos quais os personagens são interpretados por atores negros (no que ajudaria a popularizar essas histórias do folclore africano para a população). E não pegar personagens como a Ariel e a Branca de Neve (personagem proveniente das histórias dos irmãos Grimm) que vem da literatura europeia e fazer e essas operações para agradar certas militâncias ligadas à famigerada cultura woke.

Na própria África, existem lendas de sereias e criaturas similares. Entre elas a Kianda de Angola e a Mondao da África meridional. Poderia muito bem criar uma história de sereia baseada nessas lendas e contos africanos ao invés de pegar uma personagem que vem da literatura dinamarquesa e colocar uma atriz afro-americana para interpretá-la com um claro viés ideológico e político por trás de tudo.

Foto – Kianda, a sereia e rainha dos mares do folclore angolano.

Da parte daqueles que bateram palmas para a escolha da Disney, vi inclusive em redes sociais muitas comparações sem sentido algum, em especial aquelas relacionadas à iconografia histórica de Jesus Cristo.

O que essa gente percebe é que se trata de épocas e contextos completamente diferentes. Não há como comparar a iconografia religiosa dos primeiros séculos após a morte de Cristo ou mesmo da Idade Média com o da cultura pop moderna atual. Diga-se de passagem, podem-se encontrar representações de Jesus Cristo na arte asiática sendo retratado como um oriental e na arte africana sendo retratado como um negro. Retratos esses que foram feitos por artistas que se basearam no fenótipo, na aparência física e na indumentária das pessoas com as quais eles conviviam no dia a dia deles.

Foto – Pintura japonesa na qual Cristo é retratado com feições orientais e trajando roupas típicas japonesas.

Além disso, esses lacradores de plantão vêm com conversas de que a sereia é um ser mitológico, inexistente no mundo real, e que, portanto, ela pode ter qualquer aparência.

Só que o que eles não entendem (e talvez nem saibam) é que a Pequena Sereia da Disney é uma personagem que foi inspirada na personagem homônima que dá nome a um conto escrito em 1837 pelo escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, o mesmo autor de contos como a Rainha da Neve (conto esse que serviu de inspiração para a Disney produzir Frozen), o Patinho Feio, a Roupa Nova do Rei, o Rouxinol e o Imperador da China, o Soldadinho de Chumbo, os Cisnes selvagens e tantos outros. Em 1989 a Pequena Sereia ganhou uma adaptação na forma de filme animado nas mãos da Disney.

Foto – Hans Christian Andersen (1805 – 1875).

É verdade que em filmes mais antigos houve casos em que personagens históricos e literários foram interpretados por atores que não correspondiam ao fenótipo original deles. Citemos o exemplo do filme sobre Čingis Khan, uma produção de 1965 feita em conjunto entre Iugoslávia, Alemanha Ocidental, EUA e Inglaterra e que no Brasil ganhou dublagem por meio do estúdio paulistano da finada AIC (Arte Industrial Cinematográfica – que posteriormente virou a BKS).

Nesse filme dos anos 1960 o conquistador mongol que viveu nos séculos XII e XIII foi interpretado pelo ator egípcio Omar Šarif e no Brasil ganhou a voz de Carlos Campanile (que depois se tornou célebre por dublar personagens como Flash Gordon em Defensores da Terra, Thor de Fekda e Durval em Cavaleiros do Zodíaco, Demon em Samurai Warriors e o vilão icônico Freeza em Dragon Ball Z, GT e Super). A esposa principal de Čingis Khan, Bortė, foi interpretada pela atriz francesa Françoise Dorléac (a irmã mais velha de Catherine Deneuve) e no Brasil ganhou a voz da finada Sandra Campos (voz de personagens como a Jeda em Defensores da Terra, Glória em Chaves e Esmeralda em A Feiticeira). Um dos principais generais de Čingis Khan, Subotai, foi interpretado pelo ator inglês Kenneth Cope e no Brasil ganhou a voz do finado Chico Borges (voz de personagens como o Leão da Montanha no desenho homônimo, Hannibal Smith em Esquadrão Classe A, Capitão Oda em Cybercop, Barlok em Street Fighter II Victory, além de ter sido o narrador das duas primeiras temporadas do seriado do Batman dos anos 1960 e de séries tokusatsu como Jaspion, Changeman e os 10 primeiros episódios de Flashman). Entre outros exemplos que podem ser citados.

Entretanto, há um abismo de diferença entre um filme como esse dos anos 1960 e o presente filme vindouro da Disney. Visto que não vejo no primeiro filme o mesmo desejo de lacrar e de impulsionar uma agenda de politicamente correto e militância woke como vejo nessa e em várias outras produções atuais da Disney e de outros estúdios. E é bem possível que à época os estúdios envolvidos na produção do filme tivessem poucos atores de origem asiática a disposição deles. Em outras palavras, que o presente elefante na sala não estava presente em filmes como esse.

Foto – Omar Šarif (1932 – 2015) como Čingis Khan (à direita) e Françoise Dorléac (1942 – 1967) como Bortė no filme de 1965 sobre o fundador do Império Mongol.

O que podemos dizer a respeito disso? Primeiro de tudo, isso não é nenhuma surpresa. Afinal, estamos falando da Disney, um dos maiores conglomerados do mundo do showbusiness, que nos últimos anos comprou estúdios como a Lucas Films, a Fox, a Marvel e tantos outros e que de uns tempos para cá vem de forma massiva enfiandoconteúdo LGBT em produções direcionadas ao público infantil (tipo de conteúdo esse que nos anos 1990 sofria pesadas censuras nos EUA). A ponto de veicular cenas de beijos entre pessoas do mesmo sexo no desenho Star versus as Forças do Mal, um desenho que é direcionado ao público infanto-juvenil, e não a um público mais maduro como South Park.

O que aqueles que batem palmas para a escolha da Disney não entendem é que por trás de coisas como a Disney escalar uma atriz afro-americana para interpreta a Ariel há toda uma agenda sombria por trás da mensagem de “tolerância, inclusão de minorias e combate ao racismo” que é vendida ao público. E é aí que está o elefante na sala, o ponto nevrálgico da questão que está sendo colocada.

Lembram que em 2010, no vídeo sobre as bandas coloridas, o Felipe Neto (vulgo garoto colorido) disse que chegaria o dia em que seria errado você ser heterossexual? Pois bem, isso não se aplica apenas à esfera da sexualidade. O buraco está ainda mais embaixo. Também chegará o dia, por exemplo, em que será errado você professar alguma religião, comer carne de verdade, falar o idioma corretamente, e até mesmo ter um cachorro, um gato ou um coelho em casa. Também será errado você ser branco.

Hoje estamos vendo produtoras como a Disney colocando uma atriz negra para interpretar a Ariel, assim como a criação de um Superman bissexual e a inserção de uma chefe viking negra no seriado Vikings. E amanhã, o que a mesma Disney ou mesmo outras produtoras como o Netflix e a Amazon farão? Quem não me garante que um dia veremos um filme sobre a história da vida de importantes figuras históricas como Napoleão Bonaparte, Richard Wagner e Bruce Lee, por exemplo, no qual o protagonista do filme será interpretado por um ator negro? Em outras palavras, de essas produtoras com o tempo dobrarem, ou mesmo triplicarem as apostas e ficarem cada vez mais ousadas nos filmes posteriores delas? E daí para ser branco se tornar algo passível até mesmo de execração pública e cancelamento por parte de justiceiros sociais e de militantes de grupos abertamente racistas como o Black Lives Matter é praticamente que um passo. Entenderam o jogo delas, ou precisa desenhar?

É aquela velha história da rã cozida na panela quente, que no fim das contas morre por conta do contato prolongado com a água que é progressiva aquecida ao longo de vários minutos.

É que nem a questão do idioma. Há uns 15 anos, uma turminha descolada veio com uma conversa de que é errado chamar favela por seu próprio nome e a denominação correta para esse tipo de lugar é comunidade e sob o pretexto do combate ao racismo que também é errado utilizar palavras como denegrir, criado mudo e outras por supostamente remeterem à escravidão (algo sobre o qual o Professor José Paulo Netto se queixa em palestras de 2012).

Os anos passaram, e hoje vemos essa mesma gente falar em linguagem neutra/não binária para agradar ao pessoal da sopinha de letras. E amanhã, o que mais eles proporão? Quem não me garante que lá na frente eles não comecem a falar em proscrever o uso de expressões de uso corrente como boi de piranha e bode expiatório por supostamente evocar matanças de animais ou coisa do tipo? Uma coisa é certa: eles não vão parar nesse ponto. Em ambos os casos.

E entendam uma coisa: a questão aqui colocada nada tem a ver com a atriz que irá interpretar a Ariel no filme, e sim com a Disney e o que ela pretende com esse tipo de coisa. Conhecendo a atuação pregressa da Disney e de outros conglomerados cinematográficos e o que eles andam fazendo, podem ter certeza de que coisa boa para nós não é o que eles têm em mente.

E por fim, um aviso: espero que esses lacradores de plantão que hoje batem as palmas para a Disney por ter transformado a Pequena Sereia em uma negra com dreadlocks para que quando a mesma Disney resolver fazer um filme do Pantera Negra albino de olhos azuis Super Saiyan que não fiquem chateados e nem esperneiem. Ou quando o Neftlix produzir um filme sobre o Nelson Mandela e escalar para interpretá-lo um ator norueguês loiro de olhos azuis que mais parece um viking dos tempos medievais.

Foto – “A adaptação cinematográfica da biografia de Gorbačev do Netflix irá parecer algo assim” (em russo). Será esse o futuro que as futuras produções cinematográficas de estúdios como a Netflix e a Disney nos aguarda, com o precedente que o atual filme da Pequena Sereia está dando?

Fontes:

An elephant in the room (em inglês). Disponível em: AN ELEPHANT IN THE ROOM | Significado, definição em Dicionário Cambridge inglês

A Pequena Sereia (2023). Disponível em: A Pequena Sereia (2023) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

A rã que não sabia que estava sendo cozida. Disponível em: A rã que não sabia que estava sendo cozida | Metáforas (metaforas.com.br)

Disney divulga o primeiro trailer da nova adaptação do clássico A Pequena Sereia. Disponível em: REPRESENTATIVIDADE: Disney divulga trailer da nova adaptação de a Pequena Sereia (awebic.com)

Elephant in the room (em inglês). Disponível em: Elephant in the room - Wikipedia

Genghis Khan. Disponível em: Genghis Khan (dublanet.com.br)

Hans Christian Andersen. Disponível em: Hans Christian Andersen – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Um elefante na sala. Disponível em: «Um elefante na sala» - O nosso idioma - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (iscte-iul.pt)

Um comentário:

  1. Excelente artigo! A turma da lacração não conhece limites mesmo, pelo visto. Mas eles que se cuidem. Cedo ou tarde, essa cobra diabólica, cujo ovo eles chocaram, irá mordê-los sem dó nem piedade. Aí que não reclamem!

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