Foto – Petucanismo.
Pegando
um gancho com o tema do último artigo publicado, resolvi transcrever e publicar
aqui no blog os resumos que fiz do mais recente livro lançado por Jessé Souza,
“A classe média no espelho”, a respeito não apenas das limitações ideológicas
como também da colonização ideológica não apenas do PT strictu sensu como também da esquerda brasileira de modo geral pelo
discurso direitista. Em outras palavras, a respeito do tema do petucanismo a
nível ideológico.
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Segundo Jessé Souza, formam a “santíssima trindade” do liberalismo vira-lata
tupiniquim Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Fernando Henrique
Cardoso. O primeiro como filósofo e criador de noções abstratas como
personalismo, jeitinho e patrimonialismo, o segundo como o historiador que cria
uma narrativa na qual as raízes da corrupção brasileira remontam ao Portugal
medieval e que se trata de algo inerente à cultura luso-brasileira e o terceiro
o executor político de tais ideais na condição de Presidente da República
(páginas 114 a 124).
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Buarque e Faoro criam uma narrativa onde ao mesmo tempo em que idealiza um
passado divinizado de ingleses e americanos criam uma imagem demonizada do
Brasil e dos brasileiros. Sem levar em consideração, por exemplo, que a vida na
corte lusitana era em nada diferente à vida na corte inglesa. Pretende-se com
isso mostrar que os brasileiros são inferiores não apenas moralmente como
também culturalmente em relação a europeus e estadunidenses. Como se o problema
da corrupção fosse um mal endêmico do Brasil e inexistente na Europa e nos EUA
(páginas 114 e 115).
Reflexão
– Obviamente que tal ideário vira-lata do nada é que não surge. Seu surgimento
e florescimento em muito foi ajudado não apenas por toda uma tradição
pré-existente daquilo que Nildo Ouriques chama de “figurino francês” como
também pelo contexto geopolítico da época (lembrando que a influência cultural
francesa era forte nas elites brasileiras no século XIX e primeira metade do
século XX e só posteriormente foi suplantada pela influência cultural
estadunidense). No contexto geopolítico mundial que emergiu com a Revolução
Industrial a partir do século XVIII, Portugal e Espanha, que foram os pioneiros
no processo das Grandes Navegações, perderam sua posição hegemônica a tal ponto
que na corrida colonial do século XIX eram atores secundários para baixo. Nesse
período, a balança de poder dentro da própria Europa pende do sul para o norte,
em especial para a Inglaterra e a França. Era o período de Pax Britanica a nível geopolítico internacional e de Belle Époque a nível cultural. Além
disso, há a ascensão dos EUA e seu processo de industrialização e expansão
territorial. Portanto, aos olhos de figuras como Buarque e Faoro, o ideal para
o Brasil teria sido ou um triunfo do projeto holandês do século XVII ou uma colonização
francesa ou inglesa para o Brasil. Quem assim pensa geralmente ignora que
França, Inglaterra, Bélgica e Holanda deixaram trás muitos países miseráveis
como Suriname, Serra Leoa, Haiti, Bangladeš, Lesoto, Congo, Ruanda, Gabão e
outros tantos. E ignora também o fato de que durante muito tempo o centro
político, cultural e econômico da Europa não estava na Escandinávia, na
Alemanha, na Holanda e na Inglaterra, e sim nas cálidas margens do
Mediterrâneo, nas Penínsulas Ibérica, Itálica e Balcânica (é só lembrar que no
tempo do florescimento das civilizações grega e romana os atuais alemães e
escandinavos levavam uma vida não muito diferente da dos indígenas da
Amazônia).
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No fim de sua vida, o pai de Chico Buarque e da recentemente falecida Miúcha
foi um dos membros fundadores do Partido dos Trabalhadores. O PT foi fundado em
1979, surgido no contexto da abertura política que levou ao fim do regime
civil-militar. 43 anos antes, em 1936, Sérgio Buarque publicou sua principal
obra, “Raízes do Brasil”. Nessa e em outras, ele faz uma defesa dos ideais mais
elitistas da classe dos proprietários que soa como se fosse crítica social e
boa ciência de vanguarda (páginas 111 e 112).
Reflexão
II – Bem provavelmente, foi de seu pai que Chico Buarque herdou a genialidade
que ele demonstrou nos anos de chumbo da história brasileira, quando conseguiu
driblar a censura do regime civil-militar então vigente por meio de suas
músicas. De tal modo que as ideias de Sérgio Buarque soam palatáveis para
pessoas tão díspares ideologicamente tais como Fernando Haddad à esquerda como
também para Jair Bolsonaro e Fernando Henrique Cardoso à direita. Tal
influência está presente ao mesmo em muitos agrupamentos do PT e do PSOL e em
parcelas da Universidade e no PSDB e seu braço jurídico-policial chamado
Operação Lava Jato e em think thanks
como o Insper, a Casa das Garças, Instituto Millenium e outros dessa estirpe.
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Ao contrário de Gilberto Freyre que faz uma defesa ambígua da brasilidade,
Sérgio Buarque vai ser o pai de uma interpretação negativa do “caráter” do povo
brasileiro que depois influencia outros autores (página 111).
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Dessa forma, cria-se um mito nacional, o do brasileiro vira-lata, emotivo,
corrupto e desonesto, inferior no plano moral a americanos e europeus. Mito
esse que vai bater de frente com o mito proposto por Gilberto Freyre, que por
sua vez faz um elogio à mestiçagem brasileira e apoiado por Getúlio Vargas
(páginas 109 e 110, 115).
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Tal embate de ideais começa com a Fundação da USP em 1934 e a publicação de
“Raízes do Brasil” em 1936, começam a disputar posições hegemônicas nos anos
1950, alcançam a maturidade nos anos 1970 e se consolidam nos anos 1990 com o
governo de FHC (páginas 113 e 114).
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Isso se dá no contexto das disputas políticas que irromperam no Brasil após a
Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. A partir de então, o
Brasil deixa de ser uma colcha de retalhos em forma de país submetido à
autoridade de potentados locais e se torna uma ideia totalizante e com um
projeto articulado e inclusivo. Dois projetos ideológicos emergem: um mais
inclusivo ligado ao Estado interventor e outro que representa a legitimação
possível do projeto liberal agrário-comercial elitista que foi vencido em 1930
e 1932 (páginas 105 e 106).
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No curso dos anos, o segundo projeto, ligado às forças que foram vencidas em
1930 e 1932 saiu-se vencedor sobre o primeiro. Nisso dois mitos foram criados:
o da corrupção apenas da política e o do excepcionalismo paulista (páginas 116
a 119).
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O primeiro mito consiste em transformar o mercado, então dominado pela elite
paulista, no espaço de todas as virtudes. Ao mesmo tempo, faz do Estado em
fonte de toda a corrupção, mazela, vileza e ineficácia, em especial sempre que
estiver ocupado por inimigos políticos (página 119).
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O segundo, por seu turno, constrói um equivalente tupiniquim do mito
excepcionalista norte-americano, mostrando o paulista como se fosse uma espécie
de ianque brasileiro. Os dois mitos na verdade têm uma relação umbilical entre
si, já que enquanto o resto do Brasil era apresentado como elitista, corrupto e
sem energia, São Paulo era tido como moderno e construído sem a influência
estatal. Como se São Paulo, tanto antes quanto depois de 1930, não tivesse sido
beneficiado pelo Estado e seus subsídios nesse tempo todo (páginas 117 e 118).
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E o primeiro mito é igualmente fantasioso, a começar pelo fato de o dito
mercado ser tratado como se não houvesse monopólios, oligopólios, trustes,
holdings e cartéis que usam de seu poder para influenciar a política em seu favor.
Ou seja, como se no mercado só houvesse o mercadinho do Apu e o bar do Moe e
não tivesse a usina atômica do Senhor Burns (página 226).
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No decorrer do século XX, tais ideias alcançaram tamanho prestígio e aceitação
que viraram uma espécie de “segunda pele” do brasileiro. A tal ponto que a
influência ideológica de figuras como Sérgio Buarque e Raymundo Faoro pode ser
vista tanto no PSDB quanto no PT. Tanto na esquerda quanto na direita, a grosso
modo para ser mais exato (página 126).
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O PT surge nos anos 1980 e inaugura uma dinâmica nova e importante. Entretanto,
por ter absorvido para si o discurso elitista do moralismo (a ponto de ser no
tempo de seu surgimento como o partido
da “ética na política”), tem sua própria dinâmica e combatividade comprometidas
(página 137).
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Isso a tal ponto que o PT, enquanto ainda era oposição, levantava a bandeira da
ética na política, que mais recentemente foi retomada por Jair Bolsonaro (que
no campo das ideias, em temas como a corrupção, também sofre a influência do
ideário liberal-conservador que remonta a Sérgio Buarque de Holanda) (página
137).
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Por ter tido entre seus fundadores representantes do chamado “liberalismo
chique”, o PT vai ser influenciado por temas pseudocríticos como o
patrimonialismo e o populismo. Dessa forma, mostrou-se durante muito tempo
avesso ao legado varguista e afastou-se da defesa das maiorias desorganizadas
(por sua vez incorporadas por Brizola). Dessa forma, o PT nasceu como mais um
partido do moralismo postiço das elites e tornou-se o partido da “moralidade na
política”, assim atraindo para suas fileiras setores da classe média e dos
sindicatos organizados (página 157).
Reflexão
III – Em vida, Darcy Ribeiro e Leonel Brizola classificavam o PT como a
“esquerda que a direita gosta” e “galinha que cacareja pela esquerda e bota
ovos pela direita”. Haja vista o fato de que o PT durante muito tempo
demonstrou certo ranço em relação a Getúlio Vargas e seu legado
político-ideológico (que só foi diminuir após o PT subir ao poder). Posteriormente,
Gilberto Felisberto Vasconcellos, um dos colunistas da finada revista Caros
Amigos, criou a expressão petucanismo para se referir às semelhanças de
cosmovisões ideológicas entre petistas e tucanos (cujo ninho ideológico é a
mesma USP que foi criada nos anos 1930 para criar um contraponto ideológico ao
nacionalismo varguista), que também foi usado por Nildo Ouriques em um sentido
mais político. Obviamente, que a raiz desse fenômeno se encontra na influência
do pensador liberal-conservador no ideário petista. E a meu ver, o sentido
político que Nildo Ouriques atribui ao termo em realidade é uma consequência da
dimensão ideológica do problema.
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