Foto – Usina do Senhor Burns x
Kwik-E-Mart do Apu.
Em
11 de agosto de 2015, Jair Bolsonaro foi entrevistado pelo canal voz da cidade
Xaxim a respeito do PL 3722/2012 na cidade de Chapecó. Nessa entrevista ele
solta algumas pérolas, sintomáticas do fato de que há tempos o político carioca
aderiu ao liberalismo econômico que ele outrora abominava (a ponto de ter
votado a favor do projeto de lei 4567/2016, que contempla a privatização do
Petrobrás, velho sonho dos tucanos privatistas. E assim contradizendo o próprio
Bolsonaro que 20 anos antes disse que FHC deveria ser fuzilado por ter
privatizado a Petrobrás). Tendo em vista que recentemente li o livro “A elite
do atraso: da escravidão à Lava Jato”, de Jessé Souza, no embalo resolvi falar
a respeito dessa curta entrevista e tecer algumas considerações a respeito.
Após
ser perguntado pelo repórter sobre os protestos da esquerda, o político carioca
afirmou que “eles sofrem uma lavagem cerebral de décadas. Professores sempre
demonizando o capitalismo e endeusando o socialismo”. Diz em seguida que em
países como Cuba, Coreia do Norte e China não há qualquer liberdade, que o povo
está lá para ser sugado e explorado pelo Partido governante, e que a esquerda
não admite a propriedade privada por supostamente nunca terem trabalhado, que
sempre foi preguiçosa e sem vergonha e que por isso eles ódio de quem trabalha
e tem propriedade privada.
O
que será que Bolsonaro entende por propriedade privada? Propriedade privada do
que, para começo de conversa? O que Marx e Engels falam em suas obras é acabar
com a propriedade privada dos meios de produção. Ou seja, que indústrias,
usinas, bancos teriam de ser estatizados. Não o mercadinho ou a banca da esquina
ou a tua casa. Ou seja, coisas completamente distintas e que pessoas como
Bolsonaro ajudam a confundir a cabeça das pessoas ao jogar tais ideias de forma
vaga, imprecisa e indefinida. E como se essas tais “pessoas que trabalham e tem
propriedade privada” não fossem o sujeito que não raro vampiriza e torna um
inferno a vida daquelas pessoas que não tem simpatia alguma por elas. Como se o
ódio que essas pessoas que não tem simpatia alguma por esses endinheirados seja
algo gratuito e sem motivo algum de existir. Talvez justamente por causa desses
vampiros que concentram a maior parte da renda global em suas mãos que hajam
pessoas que não gostem do capitalismo e prefiram o socialismo.
O
fato é que quando uma pessoa de esquerda fala em capitalismo não se está
falando da padaria, do mercadinho ou da banca mais próxima da casa onde você
mora, e sim de pessoas infinitamente mais poderosas, que acumulam em suas mãos
fortunas milionárias ou mesmo bilionárias. No universo Simpsons, está se
falando não do Kwik-E-Mart do Apu, e sim da usina nuclear do Senhor Burns. E no
mundo real, de pessoas como o João Paulo Leman da Ambev, os barões do
agronegócio, do rentismo financeiro, dos fundos de investimento e da indústria
farmacêutica, da família Marinho que comanda a Rede Globo, o Joesley Batista da
JBS e o Roberto Setúbal do Itaú a nível nacional. Ou mesmo os donos do poder
mundial, tais como o clã Rothschild, os irmãos Koch, o Rupert Murdoch, o J.P.
Morgan, o George Soros e o clã Rockefeller a nível internacional. Em outras
palavras, aqueles que pertencem ao 1% que controlam a maior parte da riqueza
mundial e que mandam na política por trás das cortinas do poder.
Ao
final dessa entrevista, Jair Bolsonaro, após ser perguntado sobre o que acha do
liberalismo econômico, solta a seguinte pérola, aquela que para mim é a fala mais
emblemática e interessante: “O Estado, só o essencial, nada mais, além disso. O
resto tem que deixar para a iniciativa privada e que para o mercado aqui se
acomode. Tem que ser assim. Quanto mais Estado, mais corrupção, mais tristeza
para o povo brasileiro e menos esperança”. Tal fala nos sugere que para Jair
Bolsonaro apenas há corrupção na esfera pública e que o “impoluto” mercado é o
espaço virtuoso por excelência. Sendo que na realidade o real assalto ao Estado,
que movimenta quantias bilionárias para cima, é feito por agentes privados.
Afinal, o que são os 51 milhões da mala do Geddel, os 3% de propina do Sérgio
Cabral e os dólares na cueca do José Adalberto Vieira da Silva perto dos R$ 25
bilhões que o governo Temer deu de isenção fiscal ao Itaú de dívidas do imposto
de renda, dos US$ 10 bilhões da Petrobrás doados aos fundos abutres dos EUA
pelo governo Temer e dos R$ 1 trilhão que o mesmo governo Temer deu de isenção
fiscal à Shell na exploração do pré-sal? Ou do tanto que os super-ricos
brasileiros sonegam anualmente de imposto e/ou remetem a paraísos fiscais?
Achar que o centro da corrupção está em coisas como a mala do Geddel é assinar
atestado de burrice. Atestado esse que Bolsonaro assina ao pensar e olhar a
questão da corrupção dessa forma. Tais didáticos exemplos mostram que os
políticos nesses casos de corrupção são os sócios menores dessas figuras do
“impoluto” mercado que ficam com as sobras do espólio e que quando estoura o
escândalo são as peças do esquema que são descartadas e posteriormente trocadas
por novas.
E
o curioso disso tudo é que nessa maneira de se ver a questão da corrupção ele
bebe do conceito do patrimonialismo, postulado por Sérgio Buarque de Holanda em
sua obra “Raízes do Brasil”, publicado originalmente em 1936. Algo no mínimo
paradoxal e irônico, tendo em vista que Jair Bolsonaro em seus discursos se
mostra um raivoso anti-petista e anti-esquerda de modo geral e que no final de
sua vida Sérgio Buarque de Holanda foi membro fundador do PT, que cujo nome é o
do salão nobre e de um dos centros de pesquisa da Fundação Perseu Abramo (espécie
de think thank petista, fundado em
1996 em homenagem ao jornalista homônimo) e que é o pai de Chico Buarque de
Holanda, uma figura simpática ao partido de Lula, Dilma, José Dirceu, Gleisi
Hoffmann e José Genoíno.
Segundo
o conceito de patrimonialismo, haveria uma elite política incrustrada no Estado
e que dele se apodera em benefício próprio, a ponto de privatizá-lo e gerar uma
má delimitação entre as esferas pública e privada. De acordo com o pai de Chico
Buarque, esse é o grande problema que tem afligido o Brasil ao largo de sua
história. Entretanto, tal ideia é errônea e imprecisa. Parte de uma premissa
verdadeira, de que há uma elite que se apropria do aparato estatal em benefício
próprio, mas chega a uma conclusão errônea e imprecisa ao atribuir tendências
patrimonialistas (no sentido de se apropriar do aparato estatal em benefício
próprio e em prejuízo do resto da sociedade) apenas entre políticos e nunca em
agentes do setor privado. Isso acaba implicando em um sistemático ocultamento
do papel do “impoluto” mercado nos esquemas de corrupção da parte de veículos
como a grande mídia (a qual tem como anunciantes justamente frações do capital
envolvidas no verdadeiro assalto ao Estado, entre eles bancos e fundos de
investimentos). No que acaba sendo muito conveniente para aqueles que comandam
esse processo, na medida em que a corrupção envolvendo políticos acaba servindo
de cortina de fumaça para esconder o verdadeiro assalto ao Estado.
E
assim políticos entram e saem de cena, as peças da engrenagem são trocadas em
meio à esses escândalos e essa gente continua assalto o Estado impunemente, sem
ser importunada por ninguém e sem dar satisfação alguma à população. Assim como
é junto com a noção de populismo usado como porrete linguístico e cavalinho de
guerra para desmoralizar eventuais governos populares perante a opinião
pública, na medida em que eles são associados a tudo de ruim que existe em matéria
de política. Assim foi na história do Brasil com Getúlio Vargas, Jango, Lula e
Dilma. Dessa forma, graças a toda essa operação, o cidadão médio tende a olhar
como bandidos apenas os políticos envolvidos em escândalos de corrupção, ao
passo que de modo geral o mesmo olhar de reprovação não é destinado ao
presidente do Itaú ou ao dono da Ambev, que por sua vez podem muito se posar de
pessoas respeitáveis perante a sociedade.
Segundo
Jessé de Souza em sua obra “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”, a
Operação Lava Jato e a maneira como seus juízes e procuradores olham a questão
da corrupção igualmente provêm do conceito de patrimonialismo de Sérgio Buarque
de Holanda. E igualmente bebem dessa concepção do patrimonialismo na maneira de
ver essa mesma questão muitos dos liberais brasileiros da atualidade, entre
eles o MBL e Rodrigo Constantino. Gente essa que advoga, entre outras coisas,
que o Estado deveria ser o menor possível e que a solução para a economia do
país é “mais mercado” (sendo não foi com “mais mercado e menos Estado” que as
grandes potências chegaram ao patamar que chegaram). Talvez, noções como a do
patrimonialismo e do populismo ajudaram a criar o terreno fértil para que as
ideias de pensadores como Ludwig von Mises e outros da chamada Escola Austríaca
de Economia proliferem no país (a ponto de haver pessoas falarem em “mais
Mises, menos Marx”).
Foto – Sérgio Buarque de Holanda (1902
– 1982).
Fontes:
Souza,
Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: LeYa,
2017.
Jair
Bolsonaro Estado Mínimo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=07cmQvXuONs&ab_channel=JohnReilly
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