Foto – Meme
sobre a Black Friday tupiniquim.
Várias lojas fizeram em
todo o Brasil no dia 25 de novembro a grande promoção chamada Black Friday. Black
Friday, segundo o artigo da Wikipédia em português sobre o assunto, é um termo
criado pelo varejo norte-americano para designar a ação de vendas anual que
ocorre na sexta-feira após o feriado de Ação de Graças, e que depois foi
difundida para outros países de língua inglesa como o Canadá, a Austrália, a
Inglaterra e a Nova Zelândia, assim como para o Brasil (onde o evento se
encontra em sua sexta edição). Em outras palavras, a Black Friday trata-se uma
ode ao consumismo onde as lojas se livram de seus estoques e o povo vai às
lojas como se fosse uma manada enlouquecida, assim como ao colonialismo e a
macaquice. Mas esse não é o foco do presente trabalho.
Entretanto, muita gente
apelida a versão brasileira da Black Friday de Black Fraude, Black Farsa e
apelidos similares. Em seu vídeo sobre o assunto, postado no ano passado, Nando
Moura (figura essa da qual discordo de muitas de suas ideias sobre política) definiu
a Black Friday brasileira como “uma grande mentira onde tudo é cobrado pela
metade do dobro do preço” e que é uma promoção que “só pode ser feita em países
onde a taxa de impostos não é tão alta”. E o PROCON[1] em seu site divulgou uma
lista de 449 lojas para serem evitadas na Black Friday. Mas afinal, qual será a
verdade sobre a Black Friday brasileira e por que os produtos (especialmente
produtos eletrônicos de luxo como videogames, televisões de mais de 30
polegadas e tantos outros), mesmo com a promoção do dia, são mantidos com esses
preços altíssimos, geralmente proibitivos para pessoas de menor poder
aquisitivo? Vou tocar na ferida da questão da Black Friday brasileira da qual
quase ninguém fala, a qual tem relação umbilical com a forma com a qual um país
como o Brasil está inserido dentro da engrenagem capitalista mundial (a qual
recebe nos grandes meios de comunicação o elegante nome de “divisão
internacional do trabalho”. Termo esse do qual rejeito por ser elegante demais
para o meu gosto), assim como no plano interno dentro do contexto do abismo
social entre pobres e ricos que flagela o país desde os primórdios de sua
história. Em outras palavras, não vou analisar a Black Friday tupiniquim dentro
do prisma do rentismo e do consumismo como o povão vive fazendo, e sim pelo que
ela realmente é, como e para que tipo de público ela é pensada e a lógica que a
permeia.
Segundo Nildo Ouriques
em palestra proferida em 2012, no Brasil existem duas esferas de consumo: uma
baixa, de péssima qualidade e de poder aquisitivo restrito, circunscrita aos
estratos mais baixos da sociedade, e uma alta, circunscrita à classe dominante
e seu altíssimo poder aquisitivo. Tendo em vista tal fato, eu vejo que a Black
Friday no Brasil, assim como o consumo de produtos de luxo de modo geral no
mercado brasileiro, é pensada dentro da mesma lógica utilizada, por exemplo, na
comida gourmetizada que é vendida em locais como Food Trucks (que nada mais são
que os bons e velhos carrinhos de lanche, só que de e para rico, onde a comida
vendida geralmente nada mais é que as boas e velhas comidas de sempre só que
adicionadas de uma montanha de ingredientes que a encarecem consideravelmente) e
nos estádios de futebol que foram transformados em arenas (aonde a geral de
estádios como o Maracanã foi eliminada e o preço do ingresso, mesmo nos lugares
mais baratos, muitas vezes chega a custar de R$ 200,00 para cima) nos últimos
anos: algo de usufruto único e exclusivo dos ricos (ou seja, para a alta
sociedade brasileira e seus filhos), com a intenção de criar espaços de
exclusão social.
Como já mencionado antes,
Nando Moura disse em seu vídeo a respeito do assunto que a Black Friday é algo
que não pode ser feita em um país como o Brasil, onde a carga tributária é
elevadíssima (motivo esse pelo qual a Nintendo no começo de 2015 alegou para
justificar o fim de suas atividades no Brasil). E por que ela é elevadíssima? A
grande mídia corporativa nacional nunca fala uma única palavra sobre isso,
apenas se fala do problema, o povo vive reclamando sem saber da verdadeira
destinação dessa dinheirama toda e nada mais. Também se dá a impressão de que o
governo fica com todo esse dinheiro (ou ao menos a parte do leão). Só que
ninguém fala na mídia mainstream sobre a real destinação da parte do leão do
que o governo arrecada todo ano com os impostos cobrados e arrecadados da
população. Esse dinheiro todo não é destinado para pagar funcionários públicos,
muito menos para investimentos em políticas sociais, educação e saúde pública
de qualidade, transportes, forças armadas, assistência social, nada disso. A
parte do leão disso vai para pagar os juros e amortizações do serviço do
serviço da dívida (tanto interna quanto externa). Em outras palavras, vai
engordar o bolso de banqueiros e agiotas. Isso é aquilo que o finado Leonel
Brizola chamava de “perdas internacionais”.
Todo ano, o governo destina
entre cerca de 40 a 50% do orçamento da União no pagamento daquilo que alguns
chamam de “Bolsa Banqueiro”, ao passo que o Bolsa Família que a direita raivosa
brasileira vive vociferando contra a ponto de rotulá-lo de “fábrica de vagabundos”
consome apenas 0,47% do mesmo orçamento (ou seja, apenas cerca de um
ducentésimo). Fazendo uma analogia, é a mesma coisa que alguém pegar uma nota
de R$ 100,00 e gastar desse mesmo montante de dinheiro apenas R$ 0,50. E para a
classe dominante brasileira (a mesma que foi o braço civil do golpe de 1964 e
que hoje se locupleta com o petucanato[2]) isso é ótimo, pois o
custo de um programa social como esse é baratíssimo, não toca em seus
privilégios e em seus status quo,
assim como passa a tratar a questão social não mais como “caso de polícia”
como, por exemplo, nos tempos da República Velha (1894 – 1930).
Em outras palavras, para
cada R$ 1,00 que os governos Lula e Dilma deram para as classes subalternas
através de programas como o Bolsa Família, o mesmo governo através do Bolsa
Banqueiro dá cerca de R$ 90,00 a 100,00 para banqueiros e agiotas. E isso
explica em parte a razão pela qual os bancos aqui no Brasil têm tido lucros
astronômicos (incluindo nas gestões do mesmo PT que a direita raivosa brasileira
vive falsamente chamando de comunista, bolivariana, marxista e adjetivos de
esquerda similares). Como Nildo Ouriques periodicamente fala, o Brasil, com os
gastos anuais com o sistema da dívida, é como se fosse um país em uma situação
de economia de guerra. E essa dívida quanto mais se paga mais cresce, e não o
contrário: em 1995, na aurora do primeiro governo FHC, essa dívida era de cerca
de R$ 64 bilhões. Em 2003, quando FHC entregou o governo à Lula, essa dívida se
encontrava no patamar de R$ 720 bilhões. Ou seja, um aumento de 11,25 vezes e
uma média de aumento de R$ 82 bilhões por ano nos oito anos de gestão tucana.
Quando Lula passou o governo para Dilma em 2011, essa mesma dívida estava em
cerca de R$ 1,5 trilhão, e hoje seu montante supera os R$ 3,5 trilhões.
Se nada for feito para
reverter essa situação, a tendência é a dívida aumentar ainda mais e sacrificar
ainda mais o sofrido povo brasileiro através de ajustes como o que a presidente
Dilma fez junto com o então Ministro da Fazenda Joaquim Levy e o que se quer
fazer com a aprovação da PEC 241 (que sob o pretexto de ajustar as contas
públicas prevê o congelamento de investimento em áreas como saúde, educação e
habitação por um período de 20 anos). Que nada mais são que versões tupiniquins
das políticas que na Europa a Troika (comissão composta por Fundo Monetário
Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Européia) vive impondo a países
como Itália, Espanha, Portugal e Grécia. A Grécia chegou à situação de calamidade
sócio-econômica em que se encontra graças às políticas de austeridade que lhe
foram impostas pela Troika e postas em ação pela politicalha grega. Será esse o
país que queremos para nossos filhos e netos?
A razão pela qual essa
dívida tanto cresce é pelo fato de o governo federal e seus economistas, desde
o Plano Real em 1994, terem feito políticas de controle de inflação na base de
juros altíssimos, os quais não raro alcançavam patamares superiores a 40%.
Sendo que a inflação brasileira não é um problema de demanda, e sim de custos,
decorrentes desses mesmos altíssimos juros com que se pagam o serviço da
dívida. Dívida essa que tem no plano interno alimentado um grande sistema
rentista, com os capitais dos vários setores da classe dominante brasileira (incluindo
multinacionais, comerciantes, fundos de pensão, banqueiros e latifundiários) dela
se alimentando. Para mudar essa situação, será necessária uma auditoria dessa
mesma dívida (algo que a Constituição de 1988 prevê, mas que até agora nunca
foi feita), similar à feita por Vargas na década de 1930 e mais recentemente
por Rafael Correa no Equador em 2007 (a qual eliminou com 70% do montante da
dívida equatoriana). Depois de feita a auditoria, será necessária revelar ao
mundo as falcatruas e os esquemas de corrupção com os quais esses banqueiros e
seus associados estão envolvidos. E, paralelo com a auditoria, há de ser feita
também uma grande transformação revolucionária e popular contra a classe
dominante brasileira e suas variadas facções.
Foto
– Porcentagem dos gastos da União em 2014.
E, além disso, não é só
por causa da alta taxa de impostos que os preços desses produtos são
elevadíssimos. Assim como acontece com os videogames, por exemplo, existem
pessoas aqui no Brasil que tem condição de comprá-los mesmo com seus preços estratosféricos,
ainda que seja número pequeno em termos quantitativos (e depois certos incautos
falam em “Dilmastation”). E disso o mercado sabe disso muito bem. Esse consumo
de produtos de preço mais elevado acaba sendo para as elites uma forma de
status social, na medida em que são produtos que apenas eles e ninguém mais
consomem. Se alguém de menor poder aquisitivo resolver comprar um produto
dessas, vai ter que fazer uma dessas três coisas: ou comprar no exterior ou gastar
quase todo seu orçamento nisso ou compra-lo em várias prestações. E assim um
sujeito de uma família de elite pode na escola ou em qualquer outro ambiente se
gabar do fato de ter certos produtos que seus amigos de menor poder aquisitivo
não têm e esfregar isso na cara deles, de forma similar ao que o personagem
Kiko de Chaves (originalmente “El Chavo[3] del Ocho”) volta e meia
fazia com seus vizinhos menos abastados (em especial o Chaves e a Chiquinha[4]) quando mostrava a eles os
brinquedos que ele tinha e eles não. E para um comerciante varejista a
diferença é de ínfima para nula entre vender cerca de 10 videogames por R$
4000,00 e vender 100 videogames por R$ 400,00.
Foto
– Ruy Mauro Marini (1932 – 1997), um dos grandes artífices da teoria marxista
da dependência.
Nós vivemos em um país
periférico dentro da engrenagem capitalista mundial e que é regido por aquilo
que o falecido intelectual marxista brasileiro Ruy Mauro Marini chamava de
super-exploração da força de trabalho. Segundo Ruy Mauro Marini (um dos muitos
intelectuais brasileiros de esquerda perseguidos pela Ditadura Civil-Militar, a
ponto de ter sido demitido da UNB[5] por Zeferino Vaz e exilado
no Chile e no México, além de em 1978 ter tido uma polêmica com Fernando
Henrique Cardoso e José Serra), o conceito de super-exploração da força de
trabalho, abordado pela primeira vez em sua obra Subdesarrollo y revolución (1968), consiste dos mecanismos que a
burguesia de um país periférico dentro da engrenagem capitalista mundial
utiliza para aumentar ainda mais a mais-valia extraída das massas
trabalhadoras, já que essa mesma burguesia, por sua condição de sócia
minoritária do capital transnacional, tem que repartir essa mesma mais-valia. O
resultado prático disso seria a realimentação da situação de dependência em
relação aos países centrais da engrenagem capitalista mundial (ou seja, Estados
Unidos, Japão, Alemanha, França e Inglaterra) e a manutenção do
subdesenvolvimento, mesmo com a industrialização interna. Ou, usando as
palavras de Andreas Gunder Frank (1929 – 2005), outro notável artífice da
teoria marxista da dependência, o desenvolvimento do subdesenvolvimento (os
quais dentro do mundo capitalista em que vivemos nos dias de hoje formam uma
relação dialética similar ao Yin e o Yang[6] da simbologia taoísta:
dois elementos opostos entre si, mas que ao mesmo tempo se completam um ao
outro, ao ponto de um não existir sem o outro e vice-versa).
E que relação isso tudo
tem com a versão brasileira da Black Friday? Muita coisa, para não dizer tudo. Primeiro
que a super-exploração da força do trabalho depaupera com os salários da classe
trabalhadora não só do Brasil como de todo e qualquer país periférico da
engrenagem capitalista mundial a ela submetido através da mais-valia adicional,
assim prejudicando seu poder aquisitivo. E quem mais sofre com isso obviamente são
os setores da sociedade de menor renda. E segundo que com a alta carga
tributária os custos decorrentes das altas taxas juros com que o governo todo
ano paga o serviço das dívidas interna e externa (e não da corrupção que a
grande mídia vive noticiando periodicamente como muitos incautos acreditam de
forma errônea. Corrupção essa que assume a função de cortina de fumaça, de
forma a desviar a atenção dos olhos da população média quanto a essa situação
toda) são repassados para os produtos no mercado através de impostos (tais como
IPI, PIS, COFINS e ICMS[7]), com a intenção de ajudar
a cobrir esses custos todos do que muitos chamam de “custo Brasil” e que eu
chamo de “Bolsa Banqueiro”. E a questão do status social da parte das elites
brasileiras acaba servindo de legitimação a essa situação toda.
Foto
– Algumas das razões dos altíssimos preços dos produtos da Black Friday tupiniquim.
Fontes:
[TRIELO] Nildo Ouriques
– ajuste fiscal – ônus e bônus (marxista). Disponível em:
A anunciada saída da
Nintendo do Brasil. Disponível em:
As raízes intelectuais
do consórcio petucano. Disponível em:
Assembléia Popular –
Tribuna Livre. 19/02/2014. Parte 11. Disponível em:
Black Friday x “Black Fraude”, gamers são burros? Disponível em:
Black Friday é
enganação! A Farsa da Black Friday no Brasil. Disponível em:
“Black Fraude”: Procon
divulga 449 lojas online para evitar nesta Black Friday. Disponível em:
Brasil: crise financeira
ou fiscal?. Disponível em:
Depoimento de Perseu
Abramo sobre as ocorrências na Universidade de Brasília. Disponível em:
Gastos com a dívida
pública em 2014 superam 45% do Orçamento Federal Executado. Disponível em:
Coluna do Professor Tim
sobre o petucanismo – Timtim por TimTim. Disponível em:
Modelo petucano.
Disponível em:
NOTAS:
[1] Programa de Proteção e Defesa do
Consumidor.
[2] Petucanato/Petucanismo é um termo cunhado
pelo colunista da Revista Caros Amigos Gilberto Felisberto Vasconcellos (e
depois utilizado por outros como Nildo Ouriques e Adriano Benayon) para se
referir a situação política que o Brasil vive desde 1995 com a alternância de
poder entre o PT e o PSDB, dois partidos de programa de governo praticamente
igual baseados no modelo neoliberal (incluindo privatizações, terceirização e
precarização do Estado), com a diferença que o PT têm um política um pouco mais
direcionada para o lado social que o PSDB.
[3] Leia-se “Tchavo”, pois no espanhol,
assim como em idiomas como o russo, o inglês e o mandarim, a partícula ch tem
valor de tch.
[4] Originalmente Chavo e Chilindrina,
respectivamente.
[5] Universidade Nacional de Brasília.
[6] Leia-se Yan. No mandarim, assim como
no francês, quando uma palavra termina em consoante, a última é sempre muda.
[7] Imposto sobre Produtos
Industrializados, Programa de Integração Social, Contribuição para o
Financiamento da Seguridade Social e Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços, respectivamente.