quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Indicação de leitura, parte 2 - O Mercador de Veneza.


Foto – Capa do livro “O Mercador de Veneza”. Edição Martin Claret.
O escritor inglês William Shakespeare, nascido em Stratford Upon-Avon em 23 de abril de 1564 e falecido na mesma cidade em 23 de abril de 1616 aos 62 anos, é comumente tido como um dos grandes gênios literários e dramaturgos da história da humanidade. Sua fama é tal que Roberto Gomes Bolaños, o ator que deu vida aos personagens Chaves (originalmente El Chavo del Ocho) e Chapolin Colorado, ganhou o apelido de Chespirito, que em espanhol significa Pequeno Shakespeare. Shakespeare é notório por obras como Romeu e Julieta, Hamlet, A Megera Domada, Otelo e Macbeth. Entretanto, há uma obra que eu considero de grande importância para o mundo em que vivemos, muito mais que Romeu e Julieta, por exemplo: O Mercador de Veneza.
E por que falar em específico dessa obra? Assim como Recordações do Escrivão Isaías Caminha é um livro cuja leitura é essencial para se entender o que é a imprensa, o Mercador de Veneza é um livro cuja leitura é essencial para se entender o que é o banqueiro (e o agiota de modo geral). No ano passado Cristina Kirchner, em visita a Villa Lugano, recomendou às crianças de uma escola primária a leitura de “O Mercador de Veneza” para entender os fundos abutres com os quais a Argentina teve problemas no final de seu governo. No que causou certa celeuma em vários círculos judaicos do país (lembrando que é na Argentina que se encontra a maior colônia judaica da América Latina). Recentemente, foi aprovada no Senado a PEC 55 (vulgo PEC do teto), que congela por 20 anos os gastos públicos do Brasil. No que prejudicará por duas décadas os gastos em áreas como saúde, educação, habitação, forças armadas, seguridade social e outras. Tal proposta já começa a valer no ano que vem. Como todos nós sabemos isso, a despeito de toda a ideologia verborrágica que os grandes meios de comunicação vendem (onde se alega fantasias como a necessidade de equilibrar as contas públicas, controle de gastos e retóricas afins), não passa de política de austeridade cuja finalidade é garantir os lucros de banqueiros e outros agiotas em tempos de crise. Em outras palavras, austeridade só para a plebe, não para banqueiros, agiotas, investidores, especuladores e corja limitada. É o mesmo receituário que, ministrado pela Troika, levou países como Espanha, Grécia, Portugal e Itália à situação calamitosa em que se encontram no presente momento e que o ministro Joaquim Levy, ainda no governo Dilma, trouxe para o Brasil.
Esse é um momento muito oportuno para se falar dessa obra de Shakespeare (que se utilizou de várias fontes para sua concepção, entre elas o conto Il Pecorone de Giovanni Fiorentino, a coleção de contos “Gesta Romanorum” compilada ao final do século XIII e o Orador de Alexandre Sylvane), que foi escrita entre 1596 a 1598 e publicada em 1600 (ou seja, ainda no ocaso do século XVI) e que continua atualíssima. “Mas o que a história do Mercador de Veneza tem haver com a PEC 55?”, alguém certamente fará essa pergunta. É que o principal antagonista dessa peça teatral é um agiota. Seu nome Shylock. E, além de agiota, Shylock também é judeu. Alguém poderia nos acusar de incitação à aversão aos judeus ao abordar esse assunto, tal como os judeus argentinos reagiram ante a sugestão de leitura da ex-presidente Kirchner. Mas para nós o Shylock enquanto judeu é de irrelevante para baixo. Para nós nos interessa muito mais o Shylock enquanto agiota que enquanto judeu.

Foto – William Shakespeare (1564 – 1616).
A trama de O Mercador de Veneza tem lugar no século XIV na cidade italiana de Veneza, a época uma das cidades mais prósperas do mundo graças ao comércio e capital da República homônima, e se inicia com os problemas de Bassânio, jovem nobre que perdeu toda sua herança e almeja se casar com a rica herdeira Pórcia. E para isso precisa fazer uma viagem de três meses até Belmonte no continente, para a qual não tem dinheiro para custeá-la. Para resolver o problema, recorre a seu amigo Antônio, um rico comerciante de Veneza, que lhe explica que não possui dinheiro para lhe emprestar, pois sua fortuna está toda empenhada numa frota de navios mercantes que se encontram em águas estrangeiras, mas que poderá ser seu fiador se Bassânio recorrer a um empréstimo. Para isso, Bassânio contrata o já citado Shylock. Shylock, por seu turno, odeia Antônio por sua aversão a judeus, e vendo que ele será o fiador do empréstimo, faz o seguinte acordo: se o empréstimo não for pago até a data estabelecida, terá que receber como garantia uma libra da carne do corpo de Antônio. Bassânio não deseja pegar o dinheiro nessas condições, mas Antônio concorda e assina o contrato. Bassânio viaja para Belmonte para conquistar Pórcia junto com seu amigo Graciano. Em Veneza, Antônio descobre que seus navios naufragaram em alto-mar, e assim não tem mais dinheiro para pagar Shylock. Bassânio, após se casar com Pórcia, descobre o problema em que seu amigo se encontra e parte imediatamente para Veneza, trazendo junto consigo o advogado Belário, irmão de Pórcia, e o caso é levado ao tribunal. Lá, Antônio terá de pagar Shylock uma libra da carne de seu corpo.
O que tal passagem nos mostra a respeito do caráter de agiotas e banqueiros de modo geral? Que o indivíduo pode estar na pior situação financeira possível que eles estão pouco se lixando. Querem o dinheiro de um jeito ou de outro e ponto final. Para isso fazem as mais fortes e intimidadoras pressões no sujeito endividado. E não foram poucas as pessoas que emitiram opiniões nem um pouco amigáveis sobre essa gente: no século XIX Karl Marx chamou os banqueiros de honoráveis bandidos. O escritor estadunidense Mark Twain uma vez disse o seguinte a respeito dos banqueiros: “O banqueiro é o sujeito que te dá a sombrinha quando o sol está raiando, mas o pede de volta quando começa a chover”. E o que o autor de obras como As aventuras de Tom Sawyer, As aventuras de Huckleberry Finn e o Príncipe e o Pobre quis dizer com isso? Que o banqueiro é um sujeito que vive da miséria e do infortúnio alheio. Em 1933, passados 23 anos após o falecimento de Mark Twain, o juiz estadunidense Ferdinand Pecora teria cunhado o termo bankster juntando os termos “banker” e “gangster” (banqueiro e gângster em inglês, respectivamente), que por sua vez em 1937 foi utilizado pelo fascista belga Léon Degrelle de forma pejorativa para designar a gente das altas finanças modo geral.
Uma coisa há de se ter bem clara a respeito de bancos: banco não é instituição de caridade, muito menos Papai Noel. Os bancos, ainda mais no mundo capitalista em que vivemos, não estão ai para ajudar as pessoas em suas necessidades e problemas financeiros. São instituições de caráter capitalista cuja finalidade principal é o lucro e a acumulação de capital em suas mãos. Não raro se aproveitam de pessoas em dificuldades financeiras para lucrarem em cima delas (como por exemplo, em 2008 quando houve a crise econômica nos EUA, onde muitas pessoas foram despejadas de suas casas por ordens de bancos porque não conseguiam mais pagar seus credores e das mais de 500 mil pessoas que foram desalojadas de suas casas na Espanha por bancos desde 2008). São instituições que devem ser estatizadas para o bem de toda a sociedade.

Foto – A famosa frase de Mark Twain sobre banqueiros.
E é essa gente que, segundo Nildo Ouriques, está agora através de medidas como a PEC 55 promovendo uma guerra de classes contra o povo brasileiro em conluio com o governo Temer. Guerra essa que já vinha sendo promovida pela plutocracia brasileira e suas distintas frações (entre elas capital bancário, agrário, industrial, multinacional e comercial) desde no mínimo 1994 com o início do Plano Real e o pacto de classes no qual ele foi ancorado e que agora está sendo escancarada a todos nós. A aprovação da PEC 55 no Senado é apenas o começo dessa guerra. Dentro em breve o ônus do endividamento interno e externo do Estado brasileiro será passado para as costas do povo sem a menor cerimônia e o menor pudor. “E quando será que os grandes plutocratas brasileiros irão pagar o ônus disso? Pois como eles criaram isso eles em tese é que tem que pagar” Alguém poderá nos perguntar. A resposta: no dia de São Nunca. Crises no mundo capitalista são assim: os donos do poder econômico a criam, mas a ralé é quem paga. Ou seja, a velha lógica de ganhos concentrados, prejuízos socializados. Algo que na história brasileira não é nada de novo: já era praticado pelos barões do café no tempo da República Velha (1889 – 1930) através das políticas de valorização e desvalorização do café, na época o principal produto de exportação do Brasil para o exterior.
Shylock queria uma libra da carne do corpo de Antônio quando o litígio judicial entre os dois foi ao tribunal (segundo o artigo da Wikipédia em inglês sobre a obra de Shakespeare, na Inglaterra do século XVI era um conto comum o confisco do vínculo mortal de um mercador após a garantia do empréstimo feito por um amigo). Hoje, os banqueiros nacionais e internacionais, que estão sempre ganhando rios de dinheiro mesmo em tempo de crise através da alta taxa de juros (taxas essas que tem contribuído para a desindustrialização do Brasil desde o início do Plano Real) com que os sucessivos governos que tem ocupado o Palácio do Planalto desde no mínimo a redemocratização do Brasil pagam o serviço da dívida e que tem feito o Brasil de colônia desde os tempos de Dom Pedro I, querem fazer algo bem pior: esfolar e vampirizar o povo brasileiro até não poder mais. Matá-lo de fome e inanição. Tirar uma série de direitos estabelecidos em diversos governos anteriores. Fazer coisas que os militares não usaram fazer. Se banquetear com suas vísceras no jantar e beber de seu sangue servido em uma taça de vinho. Humilhá-lo da forma mais aviltante possível. Terminar o serviço que Collor e FHC iniciaram na década retrasada. E tudo isso em nome de seus superlucros. Perto desses vampiros, Shylock não passa de um amador iniciante.
E você, que xingou e vaiou a Dilma no Itaquerão na abertura da Copa do Mundo 2014, que bateu panelas na varanda de seu prédio e que foi às passeatas de rua gritar palavras de ordem como “fora Dilma”, “não a corrupção”, “fora PT”, “Lula na prisão”, “Ucranizar o Brasil”, inflar pixulecos gigantes do Lula com roupa de presidiário e apoiar o juiz Moro (que certamente está pouco se lixando para você do alto de sua toga, suas mordomias e seu polpudo salário que recebe todo santo mês) e seu séquito em sua perseguição política ao Lula, no fim acabou fazendo o mesmo papelão ridículo feito por aqueles que na Ucrânia pediam a queda de Yanukovych durante o Euromaidan e que queriam a queda de Kadaffi, Assad e outros durante a Primavera Árabe. Vocês chocaram o ovo da serpente. Agora agüentem as doloridas picadas que hão de tomar. Não reclamem se, por exemplo, o governo Temer (ou quem quer que venha a substituir no futuro próximo) resolver fazer cortes na tua aposentadoria, jogar a CLT no lixo, extinguir teu 13º salário, aprovar uma lei de terceirização do trabalho e/ou abolir a Lei Áurea. Paulo Skaf (vulgo industrial sem indústria), Neca Setúbal, Marinhos, Civita e companhia limitada lhes fizeram de otários. Quando será que vocês, que perto dessa gente não passa de plebe, vão aprender?
Foto – PEC 55 aprovada: isso é só o começo.
Fontes:
Bankster (em inglês). Disponível em: https://en.wiktionary.org/wiki/bankster
Em crise econômica, bancos desalojam 500 famílias espanholas por dia. Disponível em: http://www.contrafcut.org.br/noticias/em-crise-economica-bancos-desalojam-500-familias-espanholas-por-dia-ce0f
Estados Unidos: os abusos dos bancos no setor imobiliário e as ações de despejo ilegais. Disponível em: http://www.esquerda.net/artigo/estados-unidos-os-abusos-dos-bancos-no-setor-imobiliario-e-acoes-de-despejo-ilegais/32379
“O governo está nos chamado para a guerra”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fLzogdADB24&t=1s
Opinião – “Espanha: vidas hipotecas pela crise”. Disponível em: http://multimedia.telesurtv.net/pt/opinion/espanha-vidas-hipotecadas-pela-crise/
The Merchant of Venice (em inglês). Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Merchant_of_Venice

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