quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Petucanismo: o PSDB dentro do PT. Ou as limitações ideológicas do PT (resumo do livro "a classe média no espelho", de Jessé Souza, parte 3/5)



Foto – Petucanismo.
- A falta de um projeto alternativo explica em grande medida não apenas a colonização do PT pelo discurso do moralismo de fachada elitista como também errático e vacilante em questões fundamentais, incluindo em relação ao aparato jurídico-policial do Estado (página 157).
- Mesmo pessoas inteligentes e politicamente argutas acham que basta ter um projeto econômico alternativo que, de forma espontânea ou mágica, as pessoas vão compreender seu significado e seu benefício. Entretanto, não entendem a importância de se elaborar uma narrativa, um projeto articulado, ao elitista. Do contrário, não se sabe em que sentido reformar o Estado, o Judiciário ou a política (páginas 157 e 158).
- A falta de um projeto alternativo impossibilita um ataque ao núcleo do rentismo e da expropriação elitista, como o tentado por Dilma em seu primeiro governo. Sem tal projeto, Dilma viu-se forçada a recorrer à Rede Globo, braço do rentismo na imprensa, para explicar a luta política à população nos seus próprios termos. Ou seja, foi forçada a lutar no campo do inimigo (página 158).
- Sem um projeto político de longo prazo, é viável promover a ascensão social de setores inteiros (como parcelas dos pobres e a massa da classe média), mas a narrativa da paternidade deste esforço corre sério risco de ser perdida para Igrejas e outros atores sociais nas cidades do Centro-Sul. Como também se faz o serviço sujo para o inimigo, como no caso das leis que criaram o aparato legal durante o governo Dilma que hoje é usado para colocar o PT na ilegalidade e para atacar a democracia (página 158).
Reflexão X – Da seguinte forma o moralismo de fancaria da direita opera: cria uma máscara para o rançoso reacionarismo de pessoas como Mayara Petruso (a mesma Mayara Petruso que em 2010, após a vitória de Dilma Rousseff sobre José Serra no pleito presidencial daquele ano, postou mensagens ofensivas aos nordestinos no twitter e que por isso foi severamente punida) na qual perante a sociedade o dito cujo pode bancar o campeão da moralidade que odeia a corrupção (especialmente quando a corrupção em questão vem do PT). Foi graças a tal máscara que a direita começou a sair do armário a partir das manifestações de 2013, algo que se agravou ainda mais depois que se iniciou a Farsa Jato e do qual Jair Bolsonaro capitalizou.
Reflexão XI – Lembremos do caso da Lei da Ficha Limpa, promulgada em 2010, ainda no segundo governo Lula. Na ocasião, o único partido de esquerda que se posicionou contrário à Ficha Limpa foi o PCO, que viu a armadilha que o PT estava criando para si mesmo, na medida em que delegava ao Judiciário um poder ainda maior para fazer suas politicagens, especialmente em situações de alta polarização ideológica como a que vivemos hoje em dia. Ainda mais levando em consideração que o Judiciário historicamente sempre foi aparelhado pela Casa Grande (a ponto de pedigree e o capital de relações pessoais e familiares muito pesar para alguém alcançar altos cargos na magistratura) ao longo da história brasileira. E mais recentemente a Lei da Ficha Limpa foi usada para impugnar a candidatura de Lula nos eleições presidenciais de 2018. O que é o juiz, se não um político que veste toga? Pelo visto a esquerda tupiniquim, à exceção do PCO, não se dá conta disso. Ou será que é a toa que nos Estados Unidos Republicanos e Democratas colocam na Suprema Corte juízes alinhados ideologicamente a eles?
Reflexão XII – A meu ver, o grande erro do PT nos 13 anos em que ficou no poder não é a tal da corrupção, e sim a complacência para com a Rede Globo e outros veículos da mídia venal. A tal ponto que a Vênus Platinada recebeu cerca de R$ 6 bilhões do Governo Federal em investimentos de publicidade entre 2003 e 2013, provavelmente pensando que assim domaria o dragão com ração e que com o PT a Globo não ia fazer com eles as mesmas coisas que fez com Brizola no tempo em que o político gaúcho foi governador do Estado do Rio de Janeiro (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0509200524.htm; https://www.diariodocentrodomundo.com.br/sobre-os-gastos-de-publicidade-do-governo/). O mesmo Brizola que tinha planos de rever a concessão da Rede Globo caso fosse eleito presidente. Algo um tanto similar ao que Hugo Chávez fez na Venezuela quando em 2007 não renovou a concessão da RCTV (a mesma que foi o braço midiático do golpe de 2002). Tanto Brizola quanto Chávez perceberam a importância de se criar um veículo de comunicação com o povo de forma a contrapor-se à guerra midiática dos oligopólios midiáticos: o primeiro criou o jornal “Tijolaços” no tempo em que foi governador do RJ, e Chávez criou o programa “Alô, presidente”, que era veiculado todo domingo na TV venezuelana. Infelizmente, o PT não teve a mesma percepção aqui no Brasil e ficou à mercê da guerra midiática da mídia venal, em especial a partir de 2013.
Reflexão XIII – Por isso que é muito importante o trabalho de base ir até a favela, como disse o Mano Brown (https://www.youtube.com/watch?v=dP1qtvtvwEY). Do contrário, o indivíduo que saiu da pobreza por meio dos programas sociais dos governos petistas atribui sua melhora de vida a Deus ou a seu esforço e mérito próprio simplesmente. Dessa forma, nascem os chamados pobres de direita, verdadeiro exército de Donas Florindas (vulgo Velha Coroca) que não apenas começam a olhar com ojeriza pessoas que ainda estão na mesma situação na qual ela estava antes como também a bater e chamar de gentalha e xingamentos afins os Seus Madrugas da vida e a acreditar em contos da carochinha como a meritocracia e o self-made-man e a votar em políticos que governam apenas para o 1% mais rico tais como Dória e Bolsonaro. Como o PT esqueceu o trabalho de bases com o tempo, tais pessoas tornaram-se presas fáceis para as mentiras do cartel mafioso midiático (apud Osvaldo Bertolino) e da pregação da Igreja do Edir Macedo, do Silas Malafaia, do Valdomiro Santiago e sua teologia da prosperidade (que nada mais é que o velho discurso calvinista de que a riqueza material de uma pessoa é um sinal de salvação divina. Diga-se de passagem, é muito lamentável ver uma pessoa se dizer Católica e apregoar tais discursos de fundo calvinista. Afinal, o céu calvinista é o céu dos irmãos Koch, do George Soros, do CEO da Nestlé, da família Quandt [a família mais rica da Alemanha e donos da BMW], do Jorge Paulo Lemann, do barão de Rothschild e outros multimilionários).
Reflexão XIV – Uma coisa é certa: não foi nada que surgiu esse exército de fascistinhas que chama Bolsonaro de mito e fica de tempos em tempos fazendo a pose da arminha com as mãos. Tal pessoal, em grande medida influenciado pela pregação ideológica de Olavo de Carvalho (vulgo Sidi Muhammad Ibrahim Isa) e seu conspiracionismo em torno do Foro de São Paulo e do famigerado marxismo cultural, por filmes como Tropa de Elite e programas policiais como o do Ratinho e do Datena, saiu do armário em massa a partir das manifestações de 2013 e engrossou o coro a favor da queda de Dilma e da prisão de Lula. Ou seja, a direita esteve todo esse tempo fazendo de gato e sapato a esquerda na disputa por hegemonia ideológica.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Petucanismo: o PSDB dentro do PT. Ou as limitações ideológicas do PT (resumo do livro "A classe média no espelho", de Jessé Souza, parte 2/5)



Foto – Petucanismo.
- Em 2002 o PT chega ao poder após três derrotas consecutivas nos pleitos eleitorais anteriores. Uma vez no poder, o PT, com Lula e Dilma, desenvolveu uma série de políticas sociais, essenciais para um país de desigualdade social abissal como o Brasil. Entretanto, pecou por ter feito tais políticas sem um discurso articulado acerca do que se estava fazendo e sem a narrativa deliberada de um projeto nacional alternativo ao projeto liberal até então vigente (página 155).
- Por ter sido gestado no mesmo ambiente pseudocrítico construído em São Paulo a partir de 1934, o PT mostrou-se prisioneiro da mesma visão de mundo de sua contraparte, o PSDB. Assim teve grandes problemas em lidar com o discurso moralista de fachada desde o escândalo do mensalão em 2005 (página 155).
Reflexão IV – Percebe-se que não apenas o PT padece desse mal. Praticamente todos os partidos de esquerda do país padecem, exceto partidos de pequena expressão como o PCO. A tal ponto que setores expressivos da esquerda, incluindo o PSOL chegaram ao ponto de não apenas jogarem confetes para as revoluções coloridas promovidas mundo afora por multimilionários como George Soros e os irmãos Koch como também de mostrarem-se simpáticos à Operação Lava Jato. Que é comandada por juízes e procuradores extremamente reacionários que pensam que o lugar de políticos de esquerda não é discursando em palanques ou não presidência do país, mas atrás das grades apodrecendo como se fosse um cadáver em decomposição. Logo eles que em conluio com a mídia venal não tiveram o menor pudor em usar-se do aparato repressivo e policial do Estado para derrubar Dilma e prender Lula em um processo no mínimo duvidoso.
Reflexão V – No tempo do impeachment de Collor, enquanto que Brizola viu todo o jogo político que se escondia por trás do impeachment e se posicionou contrário à destituição do político alagoano, o PT fez massiva campanha a favor da queda de Collor. Esse é um bom exemplo do fato de que o PT padece do mal de repetir discursos e falas da direita, incluindo o moralismo tacanho de fachada que desde 1954 vem sendo usado pelas elites sempre que o Estado é ocupado por políticos que não são de seu agrado e que tentam promover uma política social mais inclusiva. Também pode-se dizer que a raiz profunda do impeachment de Dilma está no impeachment de Collor, na medida em que deu um precedente para que tal dispositivo legal seja usado nessas brigas de poder.
Reflexão VI – Hoje em dia, Bolsonaro repete o mesmo discurso de “ética na política” do qual o PT se valia antes de chegar ao poder. Ele, que chegou ao poder graças à terra arrasada que a Lava Jato fez no sistema político brasileiro e que surfando na onda do antipetismo e do tal combate à corrupção criou uma imagem de forasteiro do sistema (que não corresponde à realidade, diga-se de passagem) que veio para moralizar a coisa toda. A julgar por alguns pronunciamentos entrevistas dele, olha o problema da corrupção da mesma que os tucanos e é igualmente influenciado pelas ideias de Buarque, Faoro e outros representantes do liberalismo conservador vira-lata tanto quanto os petistas. De que o centro da corrupção está nos políticos e não no sistema financeiro, de que o mercado é o espaço das virtudes por excelência em contraposição ao Estado malvado e vicioso, etc... Bem provavelmente, o político carioca mais cedo ou mais tarde cairá na mesma armadilha que os petistas caíram (ou será que já está caindo agora que estão vindo à tona ligações dele e de sua família com as milícias cariocas?).
Reflexão VII – Em “A elite do atraso”, Jessé Souza menciona nas páginas 188 e 189 um trecho de artigo de autoria de Fernando Haddad publicado na Revista Piauí em junho de 2017. Nesse artigo em questão, o ex-prefeito de São Paulo defende ideais similares às do ministro Luís Roberto Barroso e do procurador Deltan “Power Point da Convicção” Dallagnol a respeito do problema da corrupção no Brasil. Mais recentemente, já candidato à presidência da República pelo PT, sondou para o STF o mesmo Joaquim Barbosa que no julgamento do mensalão prendeu José Dirceu e José Genoíno sem provas e que em entrevista falou que a Lava Jato e o juiz Moro vinham fazendo um bom trabalho (quando bem que poderia naquele momento ao invés disso questionar o bilionário prejuízo econômico e social que a Lava Jato deixou em nome de um pretenso combate à corrupção), a despeito de ter errado na questão do Lula. Depois que soube que Haddad elogiou o juiz do Banestado, decidi anular meu voto. Isso para não falar das recentes alfinetadas à Gleisi Hoffmann depois que a atual presidente do PT compareceu à posse de Nicolás Maduro na Venezuela. Com políticos de esquerda que assim pensam e agem, quem precisa de Bolsonaro, Witzel et caterva?
Reflexão VIII – Desde 1954 usam a ladainha da corrupção sempre que se quer tirar do poder alguém que não é do agrado dos poderosos de plantão. Assim foi com Vargas, com Jango, com Lula e Dilma. Nesses casos, a história do combate à corrupção nada mais é que uma cortina de fumaça para a politicagem de certos grupos políticos e suas ramificações em instâncias de poder como a imprensa e os tribunais. E, infelizmente, vejo a esquerda cair como patinho nesse conto do vigário. E enquanto continuar a cair nesses contos do vigário a esquerda vai continuar a ser feita de gato e sapato pela direita nessas situações. A corrupção por si mesma é a menor das preocupações daqueles que acusam seus adversários políticos do momento. Afinal, quem é a grande beneficiária dos esquemas de corrupção se não a própria elite dos proprietários que politicamente é representada por partidos como o PMDB, o PSDB e o DEM (antigo PFL)?
Reflexão IX – Achar que na Itália derrubaram o Berlusconi só por causa de bunga-bunga, Rubygate e outros escândalos relacionados a vida particular do ex-cartola do Milan é ser no mínimo muito ingênuo. Ou que na Coréia do Sul derrubaram a Park Geun Hye só por causa de Rasputina, que a Dilma foi deposta por causa de pedaladas fiscais, que o Lula foi preso por causa de tríplex e sítio em Atibaia, que a Cristina está para ser presa por causa de cadernos K e acordos com o Irã e tantos outros exemplos.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Petucanismo: o PSDB dentro do PT. Ou as limitações ideológicas do PT (resumo do livro "A classe média no espelho", de Jessé Souza, parte 1/5).




Foto – Petucanismo.
Pegando um gancho com o tema do último artigo publicado, resolvi transcrever e publicar aqui no blog os resumos que fiz do mais recente livro lançado por Jessé Souza, “A classe média no espelho”, a respeito não apenas das limitações ideológicas como também da colonização ideológica não apenas do PT strictu sensu como também da esquerda brasileira de modo geral pelo discurso direitista. Em outras palavras, a respeito do tema do petucanismo a nível ideológico.
- Segundo Jessé Souza, formam a “santíssima trindade” do liberalismo vira-lata tupiniquim Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso. O primeiro como filósofo e criador de noções abstratas como personalismo, jeitinho e patrimonialismo, o segundo como o historiador que cria uma narrativa na qual as raízes da corrupção brasileira remontam ao Portugal medieval e que se trata de algo inerente à cultura luso-brasileira e o terceiro o executor político de tais ideais na condição de Presidente da República (páginas 114 a 124).
- Buarque e Faoro criam uma narrativa onde ao mesmo tempo em que idealiza um passado divinizado de ingleses e americanos criam uma imagem demonizada do Brasil e dos brasileiros. Sem levar em consideração, por exemplo, que a vida na corte lusitana era em nada diferente à vida na corte inglesa. Pretende-se com isso mostrar que os brasileiros são inferiores não apenas moralmente como também culturalmente em relação a europeus e estadunidenses. Como se o problema da corrupção fosse um mal endêmico do Brasil e inexistente na Europa e nos EUA (páginas 114 e 115).
Reflexão – Obviamente que tal ideário vira-lata do nada é que não surge. Seu surgimento e florescimento em muito foi ajudado não apenas por toda uma tradição pré-existente daquilo que Nildo Ouriques chama de “figurino francês” como também pelo contexto geopolítico da época (lembrando que a influência cultural francesa era forte nas elites brasileiras no século XIX e primeira metade do século XX e só posteriormente foi suplantada pela influência cultural estadunidense). No contexto geopolítico mundial que emergiu com a Revolução Industrial a partir do século XVIII, Portugal e Espanha, que foram os pioneiros no processo das Grandes Navegações, perderam sua posição hegemônica a tal ponto que na corrida colonial do século XIX eram atores secundários para baixo. Nesse período, a balança de poder dentro da própria Europa pende do sul para o norte, em especial para a Inglaterra e a França. Era o período de Pax Britanica a nível geopolítico internacional e de Belle Époque a nível cultural. Além disso, há a ascensão dos EUA e seu processo de industrialização e expansão territorial. Portanto, aos olhos de figuras como Buarque e Faoro, o ideal para o Brasil teria sido ou um triunfo do projeto holandês do século XVII ou uma colonização francesa ou inglesa para o Brasil. Quem assim pensa geralmente ignora que França, Inglaterra, Bélgica e Holanda deixaram trás muitos países miseráveis como Suriname, Serra Leoa, Haiti, Bangladeš, Lesoto, Congo, Ruanda, Gabão e outros tantos. E ignora também o fato de que durante muito tempo o centro político, cultural e econômico da Europa não estava na Escandinávia, na Alemanha, na Holanda e na Inglaterra, e sim nas cálidas margens do Mediterrâneo, nas Penínsulas Ibérica, Itálica e Balcânica (é só lembrar que no tempo do florescimento das civilizações grega e romana os atuais alemães e escandinavos levavam uma vida não muito diferente da dos indígenas da Amazônia).
- No fim de sua vida, o pai de Chico Buarque e da recentemente falecida Miúcha foi um dos membros fundadores do Partido dos Trabalhadores. O PT foi fundado em 1979, surgido no contexto da abertura política que levou ao fim do regime civil-militar. 43 anos antes, em 1936, Sérgio Buarque publicou sua principal obra, “Raízes do Brasil”. Nessa e em outras, ele faz uma defesa dos ideais mais elitistas da classe dos proprietários que soa como se fosse crítica social e boa ciência de vanguarda (páginas 111 e 112).
Reflexão II – Bem provavelmente, foi de seu pai que Chico Buarque herdou a genialidade que ele demonstrou nos anos de chumbo da história brasileira, quando conseguiu driblar a censura do regime civil-militar então vigente por meio de suas músicas. De tal modo que as ideias de Sérgio Buarque soam palatáveis para pessoas tão díspares ideologicamente tais como Fernando Haddad à esquerda como também para Jair Bolsonaro e Fernando Henrique Cardoso à direita. Tal influência está presente ao mesmo em muitos agrupamentos do PT e do PSOL e em parcelas da Universidade e no PSDB e seu braço jurídico-policial chamado Operação Lava Jato e em think thanks como o Insper, a Casa das Garças, Instituto Millenium e outros dessa estirpe.
- Ao contrário de Gilberto Freyre que faz uma defesa ambígua da brasilidade, Sérgio Buarque vai ser o pai de uma interpretação negativa do “caráter” do povo brasileiro que depois influencia outros autores (página 111).
- Dessa forma, cria-se um mito nacional, o do brasileiro vira-lata, emotivo, corrupto e desonesto, inferior no plano moral a americanos e europeus. Mito esse que vai bater de frente com o mito proposto por Gilberto Freyre, que por sua vez faz um elogio à mestiçagem brasileira e apoiado por Getúlio Vargas (páginas 109 e 110, 115).
- Tal embate de ideais começa com a Fundação da USP em 1934 e a publicação de “Raízes do Brasil” em 1936, começam a disputar posições hegemônicas nos anos 1950, alcançam a maturidade nos anos 1970 e se consolidam nos anos 1990 com o governo de FHC (páginas 113 e 114).
- Isso se dá no contexto das disputas políticas que irromperam no Brasil após a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. A partir de então, o Brasil deixa de ser uma colcha de retalhos em forma de país submetido à autoridade de potentados locais e se torna uma ideia totalizante e com um projeto articulado e inclusivo. Dois projetos ideológicos emergem: um mais inclusivo ligado ao Estado interventor e outro que representa a legitimação possível do projeto liberal agrário-comercial elitista que foi vencido em 1930 e 1932 (páginas 105 e 106).
- No curso dos anos, o segundo projeto, ligado às forças que foram vencidas em 1930 e 1932 saiu-se vencedor sobre o primeiro. Nisso dois mitos foram criados: o da corrupção apenas da política e o do excepcionalismo paulista (páginas 116 a 119).
- O primeiro mito consiste em transformar o mercado, então dominado pela elite paulista, no espaço de todas as virtudes. Ao mesmo tempo, faz do Estado em fonte de toda a corrupção, mazela, vileza e ineficácia, em especial sempre que estiver ocupado por inimigos políticos (página 119).
- O segundo, por seu turno, constrói um equivalente tupiniquim do mito excepcionalista norte-americano, mostrando o paulista como se fosse uma espécie de ianque brasileiro. Os dois mitos na verdade têm uma relação umbilical entre si, já que enquanto o resto do Brasil era apresentado como elitista, corrupto e sem energia, São Paulo era tido como moderno e construído sem a influência estatal. Como se São Paulo, tanto antes quanto depois de 1930, não tivesse sido beneficiado pelo Estado e seus subsídios nesse tempo todo (páginas 117 e 118).
- E o primeiro mito é igualmente fantasioso, a começar pelo fato de o dito mercado ser tratado como se não houvesse monopólios, oligopólios, trustes, holdings e cartéis que usam de seu poder para influenciar a política em seu favor. Ou seja, como se no mercado só houvesse o mercadinho do Apu e o bar do Moe e não tivesse a usina atômica do Senhor Burns (página 226).
- No decorrer do século XX, tais ideias alcançaram tamanho prestígio e aceitação que viraram uma espécie de “segunda pele” do brasileiro. A tal ponto que a influência ideológica de figuras como Sérgio Buarque e Raymundo Faoro pode ser vista tanto no PSDB quanto no PT. Tanto na esquerda quanto na direita, a grosso modo para ser mais exato (página 126).
- O PT surge nos anos 1980 e inaugura uma dinâmica nova e importante. Entretanto, por ter absorvido para si o discurso elitista do moralismo (a ponto de ser no tempo de seu surgimento como  o partido da “ética na política”), tem sua própria dinâmica e combatividade comprometidas (página 137).
- Isso a tal ponto que o PT, enquanto ainda era oposição, levantava a bandeira da ética na política, que mais recentemente foi retomada por Jair Bolsonaro (que no campo das ideias, em temas como a corrupção, também sofre a influência do ideário liberal-conservador que remonta a Sérgio Buarque de Holanda) (página 137).
- Por ter tido entre seus fundadores representantes do chamado “liberalismo chique”, o PT vai ser influenciado por temas pseudocríticos como o patrimonialismo e o populismo. Dessa forma, mostrou-se durante muito tempo avesso ao legado varguista e afastou-se da defesa das maiorias desorganizadas (por sua vez incorporadas por Brizola). Dessa forma, o PT nasceu como mais um partido do moralismo postiço das elites e tornou-se o partido da “moralidade na política”, assim atraindo para suas fileiras setores da classe média e dos sindicatos organizados (página 157).
Reflexão III – Em vida, Darcy Ribeiro e Leonel Brizola classificavam o PT como a “esquerda que a direita gosta” e “galinha que cacareja pela esquerda e bota ovos pela direita”. Haja vista o fato de que o PT durante muito tempo demonstrou certo ranço em relação a Getúlio Vargas e seu legado político-ideológico (que só foi diminuir após o PT subir ao poder). Posteriormente, Gilberto Felisberto Vasconcellos, um dos colunistas da finada revista Caros Amigos, criou a expressão petucanismo para se referir às semelhanças de cosmovisões ideológicas entre petistas e tucanos (cujo ninho ideológico é a mesma USP que foi criada nos anos 1930 para criar um contraponto ideológico ao nacionalismo varguista), que também foi usado por Nildo Ouriques em um sentido mais político. Obviamente, que a raiz desse fenômeno se encontra na influência do pensador liberal-conservador no ideário petista. E a meu ver, o sentido político que Nildo Ouriques atribui ao termo em realidade é uma consequência da dimensão ideológica do problema.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

A esquerda que a direita gosta e a questão da Venezuela.



Foto – A esquerda que a direita gosta e suas pérolas de vestibular.
Como dito em artigo anterior publicado aqui no blog, uma das grandes fragilidades da esquerda brasileira é o fato de que não possui narrativas próprias, a ponto de falar como se fosse direita ao pensar os problemas do país com base em conceitos tais como patrimonialismo, populismo e homem cordial (algo do qual Jessé Souza fala em suas obras, incluindo “A radiografia do golpe”, “A elite do atraso” e “A classe média no espelho”). Ideias essas que surgiram dentro do contexto da disputa ideológica que se desenrolou no Brasil após a Revolução de 1930 e que defendem em essência os interesses da classe proprietária (que até 1930 controlava diretamente o Estado brasileiro como se fosse uma espécie de clube privado deles) e ao mesmo tempo em que soam como se fossem crítica social e boa ciência de vanguarda.
Indubitavelmente, isso foi o que deu margem para não apenas Darcy Ribeiro e Leonel Brizola em vida classificarem o Partido dos Trabalhadores como a “esquerda que a direita gosta” e de “galinha que cacareja pela esquerda e bota ovos na direita” nos anos 1980 como também para Gilberto Felisberto Vasconcellos criar o tema petucanismo. Hoje em dia, o mesmo pode ser dito a respeito de partidos como o PSTU, o PSOL e tantos outros da esquerda brasileira. Ou mesmo de figuras do próprio Partido dos Trabalhadores como Fernando Haddad e Tarso Genro, os quais fazem parte da ala direita do partido. E a maneira como esses partidos de esquerda se comportam na questão da Venezuela é bem paradigmática disso.
Luciana Genro, apoiadora não apenas de revoluções coloridas e golpes de Estado mundo afora como também da Operação Lava Jato, criticou Gleisi Hoffmann, atual presidente do PT, por ter comparecido à posse de Nicolas Maduro na Venezuela. A política gaúcha soltou a seguinte pérola digna de vestibular em sua conta no twitter:
“Gleisi vai representar o PT na posse de Maduro. Dando uma mãozinha para aqueles que querem liquidar a esquerda. Mas só uma esquerda mofada para apoiar o Maduro a estas alturas. Há muito tempo deixou de ser um governo progressista. E o pior é que a oposição forte é burguesia e elitista”.
Luluzinha diz defender uma “terceira via”, ou seja, um apoio irreal à esquerda pequeno-burguesa venezuelana que talvez não por acaso também defende a queda de Maduro. Só que o que ela não sabe é que a possibilidade dessa esquerda assumir o lugar de Maduro é nula, uma vez que carece do apoio popular e penetração nas bases populares que o chavismo tem. Posteriormente, ante a enxurrada de críticas sofridas por sua posição direitista, a própria Luluzinha tentou passar panos quentes em mensagem posterior, só que mantendo o mesmo posicionamento que no mínimo faz o jogo do imperialismo contra a Venezuela. “Mas ninguém pense que porque estou contra Maduro daria apoio a uma intervenção imperialista”, escreveu. “Não cabe ao imperialismo demovê-lo”, continuou em sua pérola de vestibular.
Luluzinha mal se dá conta de que o que se vê na Venezuela é uma luta entre a classe operária venezuelana (que por sua vez está do lado do governo chavista, inclusive o pressionando para que tome uma posição cada vez mais à esquerda) e o imperialismo anglo-americano, interessado não apenas em apoderar-se do petróleo venezuelano como também reafirmar sua posição senhorial no continente americano e fazer todo um reordenamento geopolítico da região em favor de seus interesses. Ou seja, é uma luta de vida ou morte entre o povo venezuelano, que está do lado do regime chavista, e o imperialismo, que almeja derrubar o regime chavista desde no mínimo o fracassado golpe de 2002. E estar contra o governo Maduro, nesse momento de assédio imperialista, é estar a favor do imperialismo. E na prática o que a postura de “nem, nem” que Luluzinha e outras figuras da esquerda brasileira adotam faz é fazer o papel de inocentes úteis do poder imperial anglo-americano.
Essa não é a primeira vez que os ursinhos morenistas demonstraram apoio às ações do imperialismo das nações centrais em seus golpes de Estado mundo afora, as chamadas revoluções coloridas (muitas vezes patrocinadas por multimilionários como George Soros e os irmãos Koch). Assim foi na Ucrânia, na Líbia, no Egito, na Síria e no próprio Brasil. Como também já dito anteriormente, a dinastia Bush fez o que fez no Iraque pelo fato de que os mitos criados pelos veículos da grande mídia ocidental a respeito da nação mesopotâmica tais como o de que o país era governado por uma brutal ditadura unipartidária e da opressão da minoria sunita sobre a maioria xiita e curda foram aceitos acriticamente e ecoados por amplos setores de esquerda. O mesmo certamente também se pode dizer a respeito do que Helmut Kohl e Bill Clinton fizeram com a finada Iugoslávia nos anos 1990. E como temos uma esquerda que chega ao ponto de reverberar as mentiras midiáticas que circulam por ai mitos como o do Holodomor, gás do Saddam, fome e falta de produtos na Venezuela chavista e tantos outros.

Foto – “Eu estou com Maduro!”: nossa posição no que tange à situação venezuelana.
Outro que também andou fazendo o jogo da direita no que tange à Venezuela é Fernando Haddad. O mesmo Haddad que durante a campanha presidencial do ano passado fez o jogo da direita no que tange à Venezuela na contramão da posição oficial do Partido dos Trabalhadores a respeito do que se passa no país caribenho, a ponto de dizer, entre outras coisas, que a Venezuela está a beira de uma guerra civil, que há uma tradição golpista em ambos os lados da contenda, que Hugo Chávez se manteve fechando o regime e que em uma situação de conflito aberto um país não pode ser classificado como democrático. Tudo isso sem levar em conta não apenas as situações de instabilidade interna como também toda a ingerência imperialista anglo-americana no país que remonta desde bem antes do nascimento do próprio Hugo Chávez. Mais recentemente, em entrevista ao El País, soltou pérolas similares. Incluindo, por exemplo, que o PT deveria ajudar a buscar “um caminho no qual possamos restabelecer o ambiente democrático na Venezuela” e fez críticas ao comparecimento de Gleisi Hoffmann à posse de Maduro. Haddad disse que “existe uma questão que considero importante, que é da mensagem que você passa ao tomar qualquer decisão. É preciso cuidar não só do gesto que você considera mais adequado, mas da comunicação desse gesto para a opinião pública mundial” e que a situação da Venezuela é grave “do ponto de vista democrático”.
Ou seja, para o mesmo Haddad que elogiou Bolsonaro e Sérgio Moro o ideal é baixar a cabeça para a quadrilha Bolsonaro, fazer todos os seus ditames e agradá-los o máximo possível. O negócio para o nosso ilustre petucano pelo visto é agir passivamente como se fosse um animal prestes a ir para o abate. Mesmo que as milícias bolsonaristas apareçam em sua casa ou o encontrem na rua e o intimidem bem ao estilo dos grupos neonazistas ucranianos que saíram da toca a partir de 2014. Provavelmente, essa troca de farpas entre Gleisi Hoffmann e Fernando Haddad pode estar inserida dentro da luta interna do próprio Partido dos Trabalhadores entre a ala lulista e ala direita do partido, que quer fazer do PT uma espécie de PSDB repaginado, de forma a expurgar o PT de seu conteúdo popular e assim torna-lo um partido palatável ao sistema político vigente (ou seja, fazer do PT um partido de verniz esquerdista e conteúdo de direita e assim tornar-se o que algo similar ao que o PTB se tornou depois que caiu nas mãos de Ivete Vargas).
Tarso Genro também soltou pérolas similares sobre a questão da Venezuela. O pai de Luciana Genro (que é um dos que falam que o PT precisa fazer autocrítica e baboseiras afins), em entrevista ao jornal Zero Hora no dia 11 de janeiro, alfinetou a atitude de Gleisi Hoffmann de comparecer a posse de Maduro, sob a alegação de que “a ida do PT à posse não ajuda à reconstrução da imagem do PT” e que o governo Maduro seria “parecido com o nosso aqui no Brasil”, já que na Venezuela não haveria “projetos consistentes para o enfrentamento da miséria e da fome” e que, tal qual Bolsonaro, também que o governo da nação caribenha estaria desconsiderando as “regras republicanas” e promovendo uma “militarização da política” (sendo que para começo de conversa a Assembleia Nacional Constituinte venezuelana destinada mais de 70% dos recursos do “Orçamento da Nação” para investimentos sociais como saúde, moradia, educação, trabalho e cultura).
Luluzinha Genro, Haddad e Tarso Genro, a julgar por suas falas, parecem viver em um mundinho cor-de-rosa de fantasias e contos de fadas no qual o mundo é um lugar democrático no verdadeiro sentido da palavra, onde não existe o senhorio que desde o século XIX EUA, França e Inglaterra exercem sobre o planeta (que, diga-se de passagem, trata-se de uma política não do governo de plantão, mas do Estado dessas nações) e toda a ingerência por essas potências feita em diversas partes do globo, incluindo a África, o Mundo Islâmico e a nossa América Latina. E que esse mesmo imperialismo quer a todo custo reafirmar sua posição hegemônica global nesse momento de constantes atritos com Rússia e China e manter tal posição ad eternum. Também parecem viver em mundo colorido onde atualmente não está acontecendo uma ascensão de governos de extrema direita como o de Bolsonaro no Brasil, Viktor Órban na Hungria, Matteo Salvini na Itália (o mesmo Salvini ao qual Evo Morales entregou de bandeja a cabeça de Cesare Battisti), Mauricio “tarifazo” Macri na Argentina, Lenin “Gorby” Moreno no Equador, Bibi Netanyahu em Israel e Petro Porošenko na Ucrânia, entre outros dessa estirpe. Muito menos Estado Islâmico, Al Qaeda, milícias do Rio de Janeiro e grupos afins. Ou mesmo os monopólios midiáticos que países como o Brasil, o Chile, o México e a Argentina têm. Mas o que esperar de gente que apoia a Lava Jato e acha que a Mãos Limpas tupiniquim está de fato combatendo a corrupção, faz elogios rasgados aos mesmos juízes que os olham como pessoas que devem apodrecer atrás das grades e que mais cedo ou mais tarde irão coloca-los na cadeia e que chega ao ponto de desejar boa sorte a Bolsonaro?
Com uma esquerda como essa que não apenas repete os chavões como também fala como se fosse direita, quem precisa de Bolsonaro, Mourão, Rede Globo, El Clarín, La Nación, RCTV, Silas Malafaia, Deltan “Power Point da Convicção” Dallagnol, Edir Macedo, Luis “peruca moradia” Fux, Sérgio “APAE” Moro, Marcelo “duplo auxílio-moradia” Bretas, TFP, Olavo de Carvalho (vulgo Sidi Muhammad Ibrahim Isa) e companhia limitada? É uma esquerda que sabota a si mesmo e que será feita de gato e sapato pelas forças reacionárias enquanto continuar a falar como se fosse direita. O petucanismo de que Gilberto Felisberto Vasconcellos e Nildo Ouriques falam, em meu entendimento, a nível ideológico trata-se disso: a esquerda que diz ser esquerda, mas que fala como se fosse direita e dessa forma ajudando a fazer seu jogo. Esquerda essa que na hora que a situação complicar-se para seu lado pouca ou nenhuma resistência terá a oferecer a seus inimigos. E fica aqui nossa solidariedade para com o povo da Venezuela, ao governo bolivariano que esse ano completou 20 anos no exercício do poder e nosso repúdio as tentativas de agressão da parte do imperialismo anglo-americano contra a nação caribenha. Avante, Maduro!

Foto – A esquerda que a direita gosta e suas pérolas de vestibular, parte II.
Fontes:
A esquerda foi incapaz e burra, segundo Jessé Souza. Disponível em: https://blogdacidadania.com.br/2018/11/a-esquerda-foi-incapaz-e-burra-segundo-jesse-souza/
A esquerda golpista e a Venezuela. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fFpIXmOA1jM
Haddad, o petucano: a esquerda brasileira e suas narrativas. Disponível em: https://resistenciaterceiromundista.blogspot.com/2018/08/haddad-o-petucanismo-esquerda.html
Haddad: “não sei o que levou Gleisi a Caracas. É preciso cuidar do gesto, mas também da comunicação do gesto”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/16/politica/1547642566_811137.html
Luciana Genro, a esquerda que Trump gosta. Disponível em: https://www.causaoperaria.org.br/luciana-genro-a-esquerda-que-trump-gosta/
Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/colunistas/ramez-philippe-maalouf/72-artigos/imagens-rolantes/10086-submanchete250914
Tarso Genro ataca Gleisi e “quer reconstruir a imagem do PT” para transformá-lo em um partido de direita.